Volumen 32 Nº 2 (abril-junio) 2023, pp.169-186
ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.8075446
A justiça penal do Bonde dos 40: uma análise da aplicação da justiça criminal em São Luís - MA, Brasil
*Thiago Brandão Lopes y **Roberto Briceño-León
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a produção e reprodução da justiça criminal pela facção criminosa Bonde dos 40 em áreas periféricas de São Luís, Maranhão, Brasil. Busca-se identificar os procedimentos utilizados pela justiça criminal e avaliar a percepção da população sobre a validade e legitimidade dessas ações penais. Para isso, foram utilizadas evidências empíricas de uma pesquisa de campo realizada em São Luís entre 2021 e 2022. As informações foram coletadas por meio de entrevistas em profundidade e observação participante com moradores que vivenciam, direta ou indiretamente, as ações dos grupos criminais faccionais, em especial, o Bonde dos 40. Além disso, foram utilizadas observações de campo e pesquisas realizadas por membros do grupo Rede de Estudos Periféricos (REP) como fontes secundárias. Os resultados apontam que a justiça penal do Bonde dos 40 se baseia em princípios de justiça popular que conferem sentido e legitimidade à facção por meio de valores comunitários. Nesse sentido, a justiça criminal se apresenta como uma solução complementar às instituições estatais, que muitas vezes são caracterizadas por sua burocracia e formalismo, dificultando a obtenção de benefícios tangíveis para a população moradora de territórios periféricos.
Palavras-chave: Bonde dos 40; facção criminal; justiça penal; punição; São Luís; Brasil
*Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, Brasil. E-mail: thiago.bran.lop@gmail.com
ORCID: 0009-0003-4675-9266
**Universidade Federal do Ceará. Brasil/Universidad Central de Venezuela. Caracas
E-mail: roberto.bricenoleon@gmail.com ORCID: 0000-0002-8882-7787
Recibido: 06/01/2023 Aceptado:14/03/2023
The Criminal Justice of Bonde dos 40: An Analysis of Criminal Justice Application in São Luís - MA, Brazil
Abstract
This article aims to analyze the production and reproduction of criminal justice by the criminal faction Bonde dos 40 in peripheral areas of São Luís, Maranhão, Brazil. The objective is to identify the procedures used by criminal justice and evaluate the population’s perception of the validity and legitimacy of these penal actions. To achieve this, empirical evidence was used from a field research conducted in São Luís between 2021 and 2022. Information was collected through in-depth interviews and participant observation with residents who directly or indirectly experience the actions of criminal faction groups, especially Bonde dos 40. In addition, field observations and research conducted by members of the Rede de estudos Periféricos (REP) group were used as secondary sources. The results indicate that Bonde dos 40 criminal justice is based on principles of popular justice that confer meaning and legitimacy to the faction through community values. In this sense, criminal justice presents itself as a complementary solution to state institutions, which are often characterized by bureaucracy and formalism, making it difficult to obtain tangible benefits for residents of peripheral territories.
Keywords: Bonde dos 40; Criminal Faction; Criminal Justice; Punishment; São Luís; Brazil
Prólogo
Ratinho é um morador de uma comunidade controlada pelo Bonde dos 40, sobrevivia fazendo pequenos serviços e ocasionalmente pedindo dinheiro aos residentes da comunidade. De tempos em tempos, ele ficava agitado quando sob efeito de drogas e insultava quem passava na rua, ou até mesmo usava drogas em lugares públicos. Essas ações, que alguns moradores ignoravam, eram vistas por outros como uma falta de respeito às normas estabelecidas pela facção e uma falta de respeito para com a própria comunidade.
Depois de várias advertências de membros da facção, Ratinho foi punido com a aplicação da palmatória, uma técnica punitiva que consiste em dar várias batidas nas palmas das mãos estendidas com um objeto de madeira. O número de batidas que Ratinho recebeu é incerto, com alguns relatos indicando 20 e outros indicando 40. A punição de Ratinho gerou controvérsia na comunidade. Para alguns interlocutores, a punição foi justa, visto que “esses viciados ficam perturbando o juízo de qualquer um…”. Para outros, a punição foi muito severa, “como o cara é daqui da área eles não deveriam fazer isso não. Todo mundo conhece [a mãe dele], deram foi mais trabalho para ela, que é idosa, e teve de cuidar dele”.
No entanto, mesmo aqueles que se opuseram à punição de Ratinho, concordam que é inaceitável que alguém perturbe a ordem na comunidade, usando drogas na rua, causando distúrbios ou sendo um dependente químico. Essas ações devem ser punidas de alguma forma, e isso foi o que a facção fez.
Os grupos criminais organizados, popularmente conhecidos como facções criminais, têm se destacado no Brasil por impor dispositivos penais em determinados territórios, como o Bonde dos 40 em São Luís. Esses dispositivos possuem força simbólica e capacidade de concretizar e legitimar seu poder de controle local. Esse poder se caracteriza pela transmissão e monitoramento de normas, bem como pela aplicação de sanções penais quando as normas são descumpridas (Biondi, 2010; Feltran, 2010; Silva, 2020; Jara, 2021; Lopes, 2022).
Pesquisadores como Telles e Hirata (2010), Feltran (2012) e Silva (2020) têm debatido sobre a regulação social realizada por grupos armados não estatais, como as facções criminais. De acordo com eles, essas dinâmicas criminais passaram a ser responsáveis por conduzir a resolução de conflitos em bairros periféricos, estabelecendo uma espécie de “justiça do crime” (Feltran, 2010) e “cobrança” (Jara, 2021). Isso teria contribuído, em certos casos, para interromper a sucessão de mortes por conflitos e vinganças privadas, bloqueando o crescimento de homicídios.
Antes de adentrar na proposta do artigo, é importante apontar que o que aqui se nomeia como facção criminal corresponde a um conjunto de pesquisas (Dias, 2013; Biondi, 2018; Feltran, 2018; Paiva, 2019; Silva, 2020) que indicam que o fenômeno das facções criminais trata de coletivos organizados em redes relacionais que intermedeiam conflitos. Esses coletivos são compostos por agentes comprometidos em fazer o crime sob a orientação de ideais éticos e políticos que constituem sentimentos de pertença, como o de irmandade e família. Nesse sentido, as facções criminais são “instituições de autorregulação e autodeterminação no mundo do crime” (Silva, 2019:159), atuando com um conjunto de regras e procedimentos reconhecidos e aceitos entre seus pares, o que serve como modelo de regulação no “mundo do crime”.
“Mundo do crime”, por sua vez, é compreendido como “uma maneira de fazer o cotidiano e a cidade por meio da ação coletiva de pessoas envolvidas de maneiras diferentes em coletivos reconhecidos socialmente”, como criminais (Paiva, 2019:167). Desse modo, como Grillo (2013) justifica, o “mundo do crime” ou simplesmente o “crime” não deve ser confundido com uma infração penal, uma vez que está associado à contextualização de práticas e trajetórias que, por sua vez, estão engajadas em ações e significados passíveis de serem anunciados como um estilo de vida ou forma de existência.
A forma de vida, como salienta Grillo (2013), tem o sentido de sociabilidade no âmbito da criminalidade, e é uma forma de vida social para a qual a referência é o oposto da forma de vida pautado pelo sentido de ordem estabelecido pelo regime legal, legitimado pelo conjunto da sociedade e estabelecido por costumes e normas ordinárias. Dessa maneira, “mundo do crime” é uma formulação nativa associada a uma ordem social, uma forma de vida específica condicionada por representações constituídas por práticas que se desenvolvem sobre a influência particular do contexto das redes de relações criminais que se constroem ao redor, principalmente, no varejo dos mercados ilegais das drogas em locais de baixa renda.
Ao considerarmos a regulação do “mundo do crime” pelas facções, é importante ressaltar que essa gestão criminal não se limita apenas às pessoas diretamente envolvidas nesse universo, mas também afeta todas as pessoas que vivem nos territórios onde as facções atuam. Dessa forma, é criado um verdadeiro modelo de “governança criminal” (Lessing, 2020, 2022; Sampó, 2021; Arias, 2017; Briceño-León, Barreira, Aquino, 2022), no qual os grupos criminais, incluindo as facções, governam pessoas e territórios, estabelecendo autoridade e impondo regras e normas de conduta. No entanto, isso não significa que haja um desejo de substituir o Estado e seu aparato burocrático, nem sua capacidade de prestar serviços.
A problematização desse fenômeno passa por questionar como a regulação social em territórios periféricos é realizada por meio de práticas criminais, em contraposição às normas estabelecidas pelo regime legal oficial e legitimado pela sociedade. Essa questão levanta a necessidade de entender como a contraofensiva criminal contra o Estado punitivo-penal (Wacquant, 2019) por meio do fenômeno faccional, contribuiu para a criação de um sistema alternativo de justiça baseado em práticas criminais. É importante analisar como essa forma de regulação social pode ser efetiva para uma parcela significativa da população, mesmo que isso signifique a violação de direitos fundamentais.
Este artigo busca analisar a produção e reprodução da justiça criminal pela facção criminal Bonde dos 40 em territórios periféricos de São Luís. O objetivo é mostrar os procedimentos utilizados pela justiça criminal e avaliar a percepção da população sobre a validade e legitimidade dessas ações penais.
Metodologia
O texto apresenta evidências empíricas de uma pesquisa de campo realizada em São Luís, Maranhão, durante o período de 2021 e 2022. A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas em profundidade e observação participante com moradores que vivenciam, direta ou indiretamente, as ações dos grupos criminais faccionais, em especial, o Bonde dos 40.
As entrevistas foram priorizadas, pois possibilitaram o acesso ao universo subjetivo dos entrevistados, suas representações e os significados que eles atribuem ao mundo que os cerca, bem como aos acontecimentos que relataram como parte de suas histórias. Por meio dessas entrevistas, foi possível transpor as particularidades de cada narrativa e construir representações sociológicas dos componentes sociais coletivos das situações examinadas (Lalanda, 1998).
Além das técnicas mencionadas, a pesquisa também se beneficiou de um recurso importante: o diálogo permanente e o intercâmbio de ideias com pesquisadores da Rede de Estudos Periféricos (REP) do Maranhão. Essa colaboração permitiu uma abordagem mais abrangente e aprofundada do tema em questão, ampliando o alcance do trabalho e fornecendo uma compreensão mais completa dos fenômenos observados.
Ademais, as observações de campo e pesquisas realizadas pelos membros do grupo REP também foram utilizadas como fontes secundárias, fortalecendo ainda mais a base empírica do presente artigo. Isso evidencia o caráter colaborativo da pesquisa e a importância do trabalho em rede para a construção do conhecimento científico.
Com base nessas evidências, é possível afirmar que a pesquisa em questão apresenta um sólido embasamento empírico e metodológico, tornando-se, assim, uma fonte confiável para a análise e compreensão dos fenômenos sociais e criminais observados na cidade de São Luís.
A cidade de São Luís e o fenômeno faccional
A cidade de São Luís é a capital do estado do Maranhão, localizado na região Nordeste do Brasil. A cidade está localizada em uma ilha, a Ilha de São Luís, no Golfo do Maranhão, no Oceano Atlântico. A cidade é cercada por praias e manguezais e é conectada ao continente por duas pontes. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população de São Luís é de aproximadamente 1,1 milhão de pessoas, o que a torna a nona cidade mais populosa do Brasil. A cidade possui uma área de cerca de 831 km², sendo a maior cidade do estado do Maranhão em termos de população e área.
Nas últimas duas décadas, a cidade de São Luís tem enfrentado desafios significativos em relação à criminalidade. Em 2014, chegou a ocupar o posto de terceira capital mais violenta do país, conforme apontado pelo Mapa da Violência (Waiselfisz, 2016). Apesar da redução nos índices de violência ao longo dos anos, a cidade ainda registra altos índices de criminalidade em comparação com outras cidades do Brasil. De acordo com o Atlas da Violência 2021, a taxa de homicídios na cidade em 2019 foi de 64,6 por 100 mil habitantes, superando a média nacional de 27,1 por 100 mil habitantes. De acordo com esses dados, São Luís está classificada como a 13ª cidade com as maiores taxas de homicídios no Brasil. A maioria das vítimas de homicídio na cidade são jovens do sexo masculino, negros e moradores de áreas periféricas. Além disso, a cidade também enfrenta problemas com roubos, furtos e outros crimes violentos.
A atuação de facções criminais é um fator significativo que contribui para a violência em São Luís. Os conflitos faccionais têm um impacto direto nas curvas de homicídios ao longo dos anos. Para compreender o papel dessas facções na cidade, é preciso considerar que elas surgiram no sistema prisional, mais especificamente no Complexo Penitenciário de Pedrinhas1. As duas primeiras facções com atuação em São Luís, o Primeiro Comando do Maranhão (PCM) e o Bonde dos 40 (B.40), foram criadas a partir de disputas entre dois grupos identitários formados nas alas do Complexo Penitenciário de Pedrinhas. O PCM foi fundado por presos vindos de municípios do interior do estado, enquanto o Bonde dos 40 foi criado por presos com origem em São Luís (Costa, 2014; Pedrosa, 2014; Pacheco, 2015).
Durante o período inicial das facções em São Luís, houve uma intensa guerra entre os dois grupos faccionais que culminou em diversas rebeliões no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, atualmente denominado Presídio São Luís. Isso levou à transferência de líderes de facções locais para prisões federais, o que permitiu o contato e a conexão entre eles e líderes de facções nacionais, como o Comando Vermelho (CV), o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Amigo dos Amigos (ADA). Esse intercâmbio foi crucial para a entrada das facções do Sudeste no cenário local, em meio ao contexto de encarceramento em massa e à expansão do mercado ilegal de drogas. Como resultado, as disputas e alianças entre as facções se tornaram ainda mais complexas (Silva, 2020).
Ao longo dos anos de 2011 a 2014, que marcou o surgimento e a expansão das facções em São Luís, a cidade registrou o maior aumento nas taxas de homicídios das últimas duas décadas. De acordo com os dados da base de homicídios do DataSUS, “houve um aumento de 65,9% no total das ocorrências de homicídio na capital, com as taxas agregadas oscilando de 55,2 para 89,95/100 mil habitantes” (Feltran, et al., 2022, p. 322). Esse período foi caracterizado pela guerra entre as duas primeiras facções maranhenses, o Primeiro Comando do Maranhão e o Bonde dos 40, que lutavam e atuavam no sistema prisional e levaram essas disputas para as comunidades da capital. Embora conflitos armados já ocorrendo em São Luís desde o início dos anos 2000, a dinâmica desses conflitos foi redimensionada com a expansão das facções das prisões para as ruas (Silva, 2020).
A redução das taxas de homicídios em São Luís somente ocorreu a partir de 2017, após pacificação das comunidades imposta pelas facções locais, em particular o Bonde dos 40, que expandiu sua hegemonia nas periferias da cidade. Por meio da imposição de um “regime normativo” nas comunidades, essa facção conseguiu mediar conflitos e impedir rivalidades, levando à pacificação dessas áreas (Silva, 2019, 2020). Com a dominação do Bonde dos 40, poucas regiões permaneceram em conflito, e as comunidades com maiores índices de homicídios passou a ser aquelas onde ocorrem disputas territoriais entre facções rivais.
O Bonde dos 40
A facção com maior número de territórios dominados em São Luís é o Bonde dos 40. De acordo com Silva (2020), o nome da facção tem origem em um “funk proibido2” intitulado “Humildade e Disciplina”, que apresenta a letra “157 só boladão... / É os 40 ladrão!”. O MC Menor da Chapa, afiliado ao Comando Vermelho (CV) do Rio de Janeiro, canta essa música, que era muito ouvida e cantada por detentos do Presídio de Pedrinhas (Silva, 2020). A facção, como já foi mencionado, surgiu no contexto de rivalidade entre presos da capital e do interior do estado no Presídio de Pedrinhas, em São Luís, e inicialmente recebeu o nome de “Bonde dos 40 Ladrões”. Mais tarde, adotou o nome Bonde dos 40, que se tornou consagrado na Ilha.
Em 2013, o Bonde dos 40 se apresentou ao público ludovicense após uma rebelião na Casa de Detenção (Cadet), que faz parte do Complexo Penitenciário de Pedrinhas. Preocupados com possíveis retaliações por parte da Secretaria de Segurança Pública do governo estadual, os líderes da facção emitiram um “salve geral3” uma ordem ou pedido dirigido para seus membros em liberdade. Esse salve ordenava a realização de incêndios em ônibus e ataques contra agentes do estado com o objetivo de estabelecer canais de negociação com as autoridades.
Os ataques de 2013, que tiveram na queima de ônibus o principal repertório de ação, foram a carta de apresentação do Bonde dos 40. Esses ataques geraram grande temor na população, muitas vezes baseado em rumores. As redes sociais foram amplamente utilizadas para disseminar mensagens de terror, incluindo histórias de assaltos e saques, o que aumentou ainda mais o clima de pânico. Embora as autoridades tenham garantido que tais relatos eram falsos, o medo inevitavelmente se espalhou. As ruas da cidade ficaram vazias, as aulas foram canceladas e muitos estabelecimentos comerciais fecharam suas portas.
Em janeiro de 2014, uma nova rebelião na Casa de Detenção foi seguida por outro “salve geral” emitido pelo Bonde dos 40. Esses novos ataques, que incluíam incêndios em ônibus e ataques contra agentes de segurança do estado, resultaram em uma tragédia de repercussão nacional. Durante um dos ataques, um ônibus foi incendiado com uma mãe e seus dois filhos dentro, e a menina Ana Clara, de seis anos, não resistiu aos ferimentos e faleceu após alguns dias no hospital, com 95% do corpo queimado. Essa atitude cruel chocou o estado e todas as forças de segurança foram mobilizadas para conter a crise. No entanto, outros ataques semelhantes ocorreram em outubro de 2014, maio, setembro e outubro de 2016. Esses eventos tornaram o Bonde dos 40 a facção mais conhecida do estado, sendo que em São Luís, a menção ao nome Bonde é suficiente para que todos entendam sua conotação.
Durante os primeiros anos de sua existência, os membros do Bonde dos 40 mantiveram-se em sigilo e evitaram fazer referência direta à facção dentro das comunidades onde atuavam, apesar dos vários ataques ocorridos na ilha de São Luís. O grupo operava como uma organização secreta. Foi apenas em 2017 que essa postura começou a mudar, com membros da facção passando a se referir abertamente ao Bonde. Esse foi o mesmo ano em que as redes sociais começaram a divulgar punições impostas a indivíduos acusados de cometer infrações e também quando surgiram inscrições em muros em várias comunidades controladas pelo Bonde dos 40, com a frase “Proibido roubar na comunidade, sujeito a punição ou pena de morte”.
A partir desse momento, tornou-se possível observar novas condutas e tentativas de impô-las nas comunidades controladas pelo Bonde dos 40. Essas mudanças representam uma nova forma de gestão do crime, baseada em uma racionalidade voltada para o controle e a vigilância, estabelecida por meio das “ideias4” que são estabelecidas por meio de conversas e acordos sobre procedimentos e estratégias que circulam entre os membros do grupo.
A governança criminal e a aplicação do regime normativo pelo Bonde dos 40
A partir de 2017, o Bonde dos 40 consolidou-se e institucionalizou-se nas comunidades que controla, o que resultou na criação de normas mais organizadas nessas áreas. Isso ficou evidente por meio da circulação de vídeos que mostram punições, demonstrando a efetividade do modelo de governança implementado pela facção (Jara, 2021).
O Bonde dos 40, nesse contexto, instala um conjunto de regras, práticas e discursos que moldam a vida das pessoas envolvidas com o crime, assim como pessoas que vivenciam as práticas do mundo do crime de modo indireto, como familiares e pessoas que vivem nas comunidades controladas pelo grupo. Esse regime normativo é formado por uma série de normas e valores que orientam o comportamento dos indivíduos envolvidos com o crime, que são constituídos e negociados socialmente em diferentes contextos e espaços de interação.
Dentre as normas estabelecidas pelo Bonde dos 40 nas comunidades onde o grupo se faz presente, é possível notar uma série de regras instaladas pela facção com o objetivo de orientar a atuação das pessoas nesses territórios. As práticas de controle estão voltadas tanto para o mundo do crime quanto para fora desse universo. Em relação ao varejo da venda de drogas ilícitas, o controle se apresenta, por exemplo, na escolha de que tipo de droga deve ser vendido em uma determinada “boca5”, além da instalação de uma tabela com preços que devem ser seguidos pelos “donos6” dos pontos de vendas que estão associados à facção. Em relação à prática de outros crimes, a facção proíbe roubos e furtos aos moradores da comunidade. Outras regras impostas pelo Bonde dos 40 estão associadas ao controle da comunidade, como a proibição de usar drogas na frente de crianças e idosos, brigar com outros moradores - o que pode ser considerado “bagunçar” na comunidade -, fazer denúncias sobre as atividades da facção, entre outros. Todas essas normas, quando não respeitadas, são passíveis de punições.
A punição
As punições aplicadas pelo Bonde dos 40 têm como objetivo arbitrar e reparar conflitos, buscando a reparação dos danos causados pelo infrator. Tais punições não devem ser aplicadas de forma indiscriminada e nem realizadas por qualquer pessoa. Para que ocorram, é necessário que se realizem “debates” conduzidos pelas lideranças locais do Bonde dos 40 em cada comunidade. A punição não tem como objetivo a morte do infrator, sendo um ato radical que só deve ser aplicado em situações extremas. Antes disso, trata-se de um ato corretivo que busca produzir efeitos exemplares. Os níveis de arbitragem são diversos, e a utilização de exemplos ajuda a entender como eles se materializam.
No exemplo mencionado no início deste artigo, referente ao caso de Ratinho, houve divergências e controvérsias quanto à punição aplicada. No entanto, não houve questionamentos quanto à legitimidade da punição, uma vez que havia um consenso de que esse tipo de comportamento, que se mostrava incômodo para a comunidade, deveria ser punido.
As divergências apontavam para três dimensões distintas. Primeiramente, diziam respeito à severidade da punição, e não propriamente à punição em si. Em segundo lugar, referiam-se ao fato de que, ao punir um membro da própria comunidade, há um sentimento de pertencimento que tende a perdoar ou tolerar, visto que se trata de um de “nós” que a facção não respeita. E, em terceiro lugar, havia um sentimento de compaixão pelo sofrimento que a punição causa a terceiros, como, por exemplo, a mãe do infrator. No entanto, tais sentimentos não são aceitos pela facção, que aplica as punições de forma exemplar, seguindo a antiga máxima jurídica romana: Dura lex, sed lex. Neste caso, trata-se da lei da facção.
Trata-se de formas de exercer o controle por meio de técnicas punitivas que produz certa quantidade de sofrimento e que obedece a um determinado ritual. A punição, nesse sentido, tem o objetivo de “ser marcante” para quem sofre o suplício, assim como deve exercer exemplo do tipo “vejam o que faço com quem comete tal infração” para os que estão sob o mesmo senso de justiça e poder (Foulcault, 2008).
Como pode ser verificado no exemplo mencionado as punições aplicadas pelo Bonde dos 40 têm como base uma lógica relacional que busca reafirmar as hierarquias e normas estabelecidas pelo grupo criminal. Dessa forma, a punição não é uma ação que se fecha em si mesma.
O processo de punição: o aviso prévio
Um casal que estava em um bar iniciou uma briga. Segundo relatos de interlocutores que estavam no local, o motivo da briga teria sido porque o homem havia dançado com outra mulher no bar, o que deixou sua namorada enciumada. Ao ser questionado pela companheira, o homem ficou alterado e deu empurrões nela na frente de todos. Após isso, o casal saiu do bar e, ao longo do caminho até a casa deles, continuou brigando. Ainda segundo relatos dos interlocutores, ao chegarem em casa, era possível ouvir muitos gritos e sons de objetos sendo arremessados ao chão. Alguns vizinhos, percebendo que uma agressão poderia estar ocorrendo, se reuniram na porta da casa. No entanto, ninguém teve coragem suficiente para tentar entrar na residência. Um dos líderes locais do Bonde dos 40, viu o que estava acontecendo e entrou para verificar a situação. Conforme relataram alguns vizinhos, ele bateu na porta e solicitou conversar com o casal. Poucos minutos de conversa foram suficientes para acabar com a briga e o tumulto na entrada da residência.
Os interlocutores ainda contaram que, após o evento envolvendo o casal, membros do Bonde dos 40 chamaram novamente o casal e comunicaram que não tolerariam outra situação parecida. O companheiro da vítima foi advertido para que não voltasse a agredir sua parceira, caso contrário, seria punido severamente pela facção.
O evento em questão não necessitou da aplicação de uma punição para ser resolvido. Como se tratava de uma primeira falta, e houve reconhecimento da facção entre os envolvidos para arbitrar a crise, uma segunda chance foi ofertada. Essa é uma característica desse tipo de situação, em vários casos em que há a intervenção do Bonde dos 40 em contendas menos graves é possível verificar que a punição é precedida por um aviso prévio.
Essa segunda chance opera como uma segunda oportunidade e tem o caráter de tolerância, uma vez que os faccionados acreditam que todos são passíveis de erros e em várias situações o “certo” é esperar que o indivíduo aprenda com o erro e não cometa mais a falta. As faltas que estão nesse grau de tolerância geralmente nem precisam passar por debates e são resolvidas com conversas.
Até mesmo os casos que resultam em punições, como o caso de Ratinho relatado anteriormente, são precedidos pela etapa do aviso prévio. Ratinho foi punido somente porque reincidiu no erro. Não há um limite definido de avisos que a facção deve dar em caso de falta, isso depende muito da situação e do grau da falha, chamado de “vacilo” na linguagem da facção. “Ratinho”, por exemplo, recebeu muitos avisos em diferentes “vacilos” antes de receber a punição.
A proporcionalidade da punição
Como sugere os casos mencionados anteriormente a aplicação de uma punição deve ser proporcional a falta cometida. Na forma de aplicação de punições pelo Bonde dos 40 há princípios que estabelecem que a sanção imposta deve ser adequada e proporcional à gravidade da conduta praticada. Em outras palavras, a punição deve ser justa e proporcionar uma resposta adequada ao comportamento inadequado do indivíduo.
A aplicação de uma punição, nesse contexto, exige uma análise sobre as circunstâncias do caso, como a gravidade da conduta, a intenção do agente, as consequências do comportamento, dentre outros fatores relevantes. Dessa forma, busca-se garantir que a punição imposta seja justa e equilibrada, evitando excessos ou abusos na aplicação da lei criminal.
Novamente o caso de Ratinho é um exemplo interessante do ponto de vista da análise, uma vez que esse tipo de punição não poderia ter como fim a morte do infrator, mesmo que Ratinho seja desprezado pelos faccionados por ser um viciado, um “nóia” na linguagem da facção, não respeitar as regras e bagunçar a comunidade, as suas ações não poderiam acabar em uma pena de morte. A execução da sanção por meio da palmatoria, nesse contexto, foi o grau suficiente para o tipo de infração cometida, e ela somente ocorreu porque antes a facção por diversas vezes já o havia alertado sobre o seu comportamento na comunidade. Casos como o de Ratinho são punições que nunca podem levar a uma execução, mesmo Ratinho sendo um “verme”, os seus familiares não mereceriam a dor da morte de um parente. E o caso teria uma repercussão ruim na comunidade. Nesse sentido, uma punição aplicada de modo a tirar a vida de uma pessoa que deveria apenas receber uma lição exemplar pode acarretar implicações que os faccionados gostariam de evitar dentro da comunidade. Agir com justiça para o Bonde dos 40, nesse contexto, é punir de acordo com a infração cometida.
O Disciplina
“Estar na disciplina”, “respeitar a disciplina” ou ainda “seguir a disciplina” são expressões utilizadas para afirmar que a ética e o comportamento reivindicado pelo Bonde dos 40 estão sendo observados. Além disso, o Disciplina, no Bonde dos 40, também é uma posição que se caracteriza como um dispositivo de poder. Essa posição tem a função de assegurar que as normas aplicadas pela facção sejam cumpridas, e é por isso que cabe a ela a execução das punições.
Neste sentido, o Disciplina tem relação com o quadro hierárquico7 da facção e está presente tanto dentro do sistema prisional quanto nas ruas, em comunidades dominadas pela facção. Ele é um quadro que exerce autoridade imediata local, estando atrás na linha de comando apenas do Torre que é autoridade da facção em uma região ou prisão.
É verdade que a posição de Disciplina não é encontrada em todas as comunidades onde o Bonde dos 40 está presente em São Luís. Em algumas dessas comunidades, quem executa as punições são os donos dos pontos de venda de drogas ilícitas. No entanto, é importante ressaltar que a posição de Disciplina tem uma forte ligação com o modelo de aplicação da justiça penal do Bonde dos 40 e sua existência está relacionada ao cumprimento das sanções impostas pelo grupo.
No entanto, mesmo que o Disciplina seja o responsável pela execução das punições, ele não está isento da vigilância da facção. Conforme será abordado mais adiante, é fundamental que ele esteja alinhado com o que a facção ou a situação exigem como justo.
O princípio de justeza das punições
Para o Bonde dos 40, a aplicação de uma punição exige que os critérios de justiça de uma situação sejam cumpridos de acordo com o que é estabelecido na relação e considerado como “certo”8, que é para eles a forma de definir o que é uma ação correta e justa. Esse critério se aplica a todos, como é possível verificar no relato a seguir.
Um interlocutor narrou que um Disciplina do Bonde dos 40 foi encarregado de aplicar uma punição a um indivíduo acusado de cometer vários pequenos furtos na comunidade, apesar de ter sido advertido diversas vezes pela facção para não realizar esses atos. A punição em questão consistia em um tiro na mão, uma técnica punitiva usada para quem desrespeitou a proibição de roubo na comunidade. Para realizar a punição, a pessoa deve esticar as mãos diante do seu carrasco, reconhecer seu erro e afirmar que não cometerá mais o ato na comunidade. Em seguida, um tiro de arma de fogo é disparado na mão do indivíduo. No entanto, no relato em questão, o Disciplina não aplicou a punição como previa o código disciplinar da facção. Em vez de atirar nas mãos do infrator, o Disciplina atirou em suas costas, o que levou à morte do homem que recebia a punição. De acordo com alguns interlocutores, o Disciplina justificou o tiro nas costas alegando que o infrator tentou fugir da punição. No entanto, durante o debate que deliberou sobre a conduta do Disciplina, foi afirmado que sua ação foi motivada pelo fato de ele ter uma rixa antiga com o indivíduo assassinado. Após deliberação que envolveu membros da cúpula da facção o Disciplina foi condenado à pena de morte por ter excedido o limite de força física que deveria ser imposto na punição e, por logo em seguida, ter fugido com o dinheiro da “caixinha9” da facção, o que agravou ainda mais o seu caso. Ainda, de acordo com o relato do interlocutor de campo, o Disciplina conseguiu escapar antes da aplicação da pena de morte, pois já esperava receber uma punição muito severa.
Como pode ser verificado no relato sobre o caso do Disciplina. O princípio de justeza nas punições praticadas pelo Bonde é definido nas relações estabelecidas pelo grupo em seus rituais. Embora esses rituais não tenham um caráter fixo e pré-determinado em manuais, eles existem e visam à manutenção de um tipo de ordem. Nesse sentido, mesmo durante a aplicação de uma punição, certos princípios e critérios de ação são esperados. Quando esses critérios não são cumpridos, ocorre uma violação das normas estabelecidas pelo grupo, o que é entendido como uma forma de desafiar o regime normativo estabelecido pela justiça do crime e um interrompimento de uma aplicação de punição entendida como justa.
Agir com justeza, portanto, é cumprir com o que é considerado “certo”. No contexto do Bonde dos 40, isso significa agir de acordo com a ética e a disciplina do grupo, ou seja, com o que é estabelecido pelo grupo como o esperado. Esperava-se que o Disciplina agisse de acordo com os princípios de julgamento justo e proporcionalidade estabelecidos pelo grupo ao aplicar uma punição. Quando um Disciplina, ao aplicar uma punição, confunde sua posição e estabelece como critério sua vontade ou desejo de vingança, ele não está agindo de forma justa e correta, nem com a pessoa que deve ser punida, nem com a facção.
O debate
De acordo com relato obtido em campo de pesquisa. Um pedreiro foi assassinado por um jovem faccionado em São Luís sem a autorização do Bonde dos 40. No dia seguinte, a facção convocou um debate, por meio de aplicativo de mensagens instantâneas, para decidir qual seria a punição que o autor do crime deveria receber por ter cometido um assassinato sem a comunicação prévia e sem uma justificativa plausível, uma vez que o pedreiro não havia cometido nenhum ato que justificasse a sua morte. O autor do assassinato teve a oportunidade de se defender e explicar por que cometeu o ato sem pedir permissão da facção antes. Durante o debate, que é uma espécie de deliberação realizada por líderes da facção, o jovem alegou que o pedreiro havia passado a mão em sua esposa na noite anterior ao crime, enquanto os dois bebiam juntos. Ele disse que ficou enfurecido e não conseguiu controlar sua raiva, levando-o a cometer o assassinato. No entanto, a justificativa do autor do crime foi considerada frágil pelos membros da facção, que decidiram que ele deveria ser punido com a expulsão da facção. A decisão foi tomada para mostrar que o assassinato foi uma ação desproporcional em relação a atitude do pedreiro. Mas a punição não ocorreu somente por esse motivo, o jovem ao usar o recurso da força privada agiu em desacordo com os critérios de justiça estabelecidos pela facção.
Ainda segundo o interlocutor, o debate e seu resultado se fizeram conhecidos porque a facção sempre pública um comunicado, por meio digitais, em grupos de mensagens instantâneas, informando os outros faccionados sobre a exclusão do quadro como membro do grupo.
Os debates realizados pelo Bonde dos 40 podem ser ou não deliberados por meios digitais, quando acontecem, um grupo provisório é montado e quando o debate é concluído o grupo é excluído. As pessoas envolvidas no caso são adicionadas pelo Torre e /ou Disciplina, que são os responsáveis pela mediação dos debates. Nesse espaço o acusado pode se defender e apontar sua justificativa. Em debates que envolvem situações mais complexas, como eventos que podem levar a pena de morte, membros das facções que estão presos e que exercem papel de liderança podem participar das deliberações, estes geralmente ocupam os postos de Conselho de Finais ou Geral do Estado e exercem o papel decisório sobre o caso.
Portanto, como pode ser observado no caso mencionado, o debate pode ser entendido como um embate de ideias para buscar a justiça das ações em uma determinada situação. Durante esse momento, é garantida uma ampla argumentação, com foco em acusações e defesa. Essas argumentações têm como princípio a reconstituição das situações, buscando, com isso, a construção verossímil dos acontecimentos e dos atos.
O senso de justiça popular e a legitimidade da punição: justiça atrasada é justiça negada
Embora o uso da violência armada seja uma característica marcante dos grupos criminais para impor poder e obediência, esse não é o único elemento que explica por que cada vez mais pessoas em territórios periféricos em São Luís acabem buscando a justiça do Bonde dos 40 em vez da justiça oficial.
Acreditamos que na produção e reprodução do poder local, o Bonde dos 40 acaba por mobilizar componentes muito mais sutis na disputa pelas normas de convivência. Em muitos casos, a reivindicação de uma justiça que esteja mais próxima do senso de justiça das pessoas comuns é um fator importante. A facção é capaz de agir de forma mais eficiente e célere do que a justiça oficial, que muitas vezes é lenta, tardia e distante. Isso significa que, para muitas pessoas nas comunidades onde o Bonde dos 40 atua, a facção é vista como um intermediador de conflitos mais eficaz do que as instituições formais.
Além disso, a facção é capaz de atender às necessidades imediatas das pessoas de forma mais rápida do que o Estado. Um exemplo emblemático foi relatado por um interlocutor de campo que teve seu smartphone roubado em uma avenida próxima à sua comunidade, quando voltava do trabalho. Sabendo que possivelmente os autores do crime eram residentes do bairro vizinho, que também era dominado pelo Bonde dos 40, ele resolveu pedir ajuda aos membros da facção de sua comunidade para recuperar o aparelho. A resposta veio em poucas horas, após os membros da facção entrarem em contato com seus aliados no bairro vizinho. Foi possível localizar os autores do crime e recuperar o aparelho. Esse fato contrasta com a burocracia e lentidão da justiça estatal, que muitas vezes não é capaz de resolver problemas urgentes como este.
No caso relatado pelo interlocutor se ele optasse pelas vias oficiais, ele teria que ir à delegacia, registrar um Boletim de Ocorrência (B.O) e contar com o aparato policial para recuperar seu smartphone roubado. No entanto, a probabilidade de a polícia conseguir recuperar itens como esses roubados é muito baixa.
Dessa maneira, é possível inferir, a partir desse exemplo, que o Bonde dos 40, ao regular o mundo do crime, fez com que as pessoas comuns começassem a reivindicar o sistema de regras da facção. Por outro lado, isso tem sustentado e legitimado as ações das facções nessas comunidades. Com isso, pode-se afirmar que, nas comunidades onde o Bonde dos 40 atua, ele se tornou uma instância de poder local com capacidade de solucionar os problemas dos moradores de forma muito mais rápida e eficiente que a justiça oficial.
Discussão: A justiça como decisão prática
Não é incomum ouvir que os debates realizados por facções criminais apresentam semelhanças com os procedimentos de um julgamento em um tribunal que aplica a justiça estatal. Não por acaso, casos como esses têm sido amplamente divulgados nos meios jornalísticos como “tribunais do crime”. Nesses relatos, são utilizadas expressões que pertencem ao vocabulário jurídico, como réu, juiz, julgamento e defesa. A utilização desses termos sugere que, durante os debates para decidir sobre a justiça de determinados atos, as facções incorporam elementos da forma como a justiça estatal aplica suas normas. No entanto, acreditamos que essa incorporação não deve ser vista como imitação ou reprodução da justiça criminal do modo como o Estado julga os transgressores de suas leis.
Os estudos sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, são importantes referências para entender essa questão. Biondi (2018) destaca que a justiça do crime não possui caráter jurídico, diferentemente da justiça estatal, que está diretamente ligada a um sistema legal que estabelece direitos e penalidades. A justiça do crime é vista como uma “luta” e se afasta da ideia de uma concepção geral conceitual de “justiça”. Além disso, não se baseia em um sistema de leis, direitos, obrigações e sanções que regulamentam as relações sociais ou resolvem conflitos.
Nessa abordagem, a “luta” é pelo que é considerado “certo” dentro do universo criminal e em suas áreas de influência imediata. Isso ocorre porque, para Biondi (2018), a justiça criminal acontece em circunstâncias não fixas, como são as leis e as instituições da justiça oficial. Em vez disso, durante um debate realizado por membros de uma facção, por exemplo, a situação “é passível de ser alterada, bloqueado, rechaçado ou até mesmo anulado no decorrer das sucessivas transformações pelas quais passam as situações em uma luta pelo certo” (Biondi, 2018:353).
De acordo com Feltran (2010), que também estudou o PCC, a justiça criminal é mais uma decisão prática baseada na experiência diária do que um princípio normativo idealizado. Isso se deve ao fato de que muitas vezes é difícil ou até mesmo impossível obter um benefício tangível dos direitos por meio do sistema jurídico e da justiça estatal. Dessa forma, outras formas de solução de conflitos são buscadas e percebidas como complementares às instituições estatais que atuam como ordenadoras.
O fato de as pessoas optarem pela justiça criminal não implica que elas sejam incapazes de lidar com as regras da justiça estatal. Isso simplesmente sugere que a justiça criminal é uma das opções disponíveis para a ideia de justiça. A outra opção é a justiça interna do crime, na qual não há garantia dos direitos e a aplicação de leis universais e humanistas para toda a sociedade (Feltran, 2010).
Com base no que foi dito anteriormente, pode-se afirmar que, embora haja semelhanças no vocabulário jurídico utilizado nas formas de justiça, elas diferem em sua natureza. Enquanto a justiça estatal está diretamente ligada a um sistema legal que estabelece direitos e penalidades, a justiça do crime é vista como uma luta pelo que é considerado certo dentro do universo criminal e não se baseia em um sistema de leis universais. Dessa forma, a justiça criminal aplicada pelo Bonde dos 40 deve ser entendida mais como uma decisão prática baseada na experiência diária das pessoas vinculadas ao mundo do crime do que como uma tentativa de emulação da justiça oficial.
Conclusão
Como foi possível identificar neste artigo, o Bonde dos 40, facção criminal que tem grande influência nas comunidades periféricas em São Luís, estabeleceu uma forma de relação social que se baseia em referências simbólicas, as quais se consolidam principalmente por meio de processos rotineiros e rituais próprios do ambiente criminal (Tambiah, 1996). A facção desenvolveu um conjunto de práticas e dispositivos para mediar conflitos que ocorrem no mundo do crime e nas periferias onde a organização atua. Quando ocorrem desvios de conduta, as punições são aplicadas de acordo com visões de mundo específicas, estabelecidas em debates liderados por líderes locais designados em cada comunidade. Essas lideranças incorporam o código de conduta do grupo e são responsáveis por aplicar punições em forma de suplício.
Também foi possível mostrar que na aplicação das punições pelas facções, como afirma Jara (2021), há um regime normativo da facção além das lideranças, que devem interpretar cada caso a partir das normas instituídas e arbitrar os conflitos locais que se estruturam a partir do cotidiano das comunidades e do conhecimento prévio do comportamento de seus moradores. Logo, a punição tem a função de interromper o prolongamento dos conflitos privados por meio de parâmetros de convivência comunitária, seguindo, com isso, um senso produzido por uma justiça criminal.
Nesse sentido, mesmo em situações em que os debates e rituais não se apresentam claramente, existem critérios racionais estabelecidos que devem ser seguidos e a atuação da “lei do crime” pode ser verificada.
É por conta desse critério racional que a punição, quando é aplicada, deve ser justificada em um contexto verossímil. Ademais, mesmo que a punição tenha por objetivo a pena de morte, a decisão para a aplicação de qualquer punição somente pode ser tomada se for precedida por um debate que fundamente a tomada de tal ação. A ausência do debate, ou mesmo uma ação que é tomada de forma deliberadamente individual e que tenha sido decidida sem autorização de um debate, acaba sendo uma tomada de ação sem motivação, o que faz perder a legitimidade desse ato.
Quando os critérios estabelecidos por meio de debates não são cumpridos, ocorre uma quebra das normas estabelecidas pelo grupo, o que é considerado uma afronta ao regime normativo estabelecido pela justiça criminal. Nesse sentido, é importante destacar que uma punição aplicada a um indivíduo não deve ser entendida como um desejo pessoal de quem a aplica, mas sim como a aplicação de uma sanção a quem desobedece a uma norma criada anteriormente pelo grupo.
Respeitando essa lógica, o Disciplina ao cumprir uma punição, a finalidade não é castigar quem o ofendeu, mas sim quem ofendeu o grupo. É fundamental compreender que a punição, do ponto de vista da justiça criminal, visa manter uma ordem criminal, assim como, assegurar que as normas sejam respeitadas.
Como pôde ser observado, o senso de aplicação de punições opera com lógicas próprias, mas está condicionado a princípios morais associados a valores comuns, como o de justiça. Nesse sentido, a justiça criminal pode corresponder ao senso de justiça proclamado como correto por pessoas comuns. Esse fator pode ser determinante para aproximar a justiça popular da justiça criminal. É possível que seja por isso que cada vez mais os conflitos nas comunidades dominadas pelo Bonde dos 40 sejam intermediados por instituições de autorregulação do mundo do crime.
Dessa forma, compreendemos que a justiça criminal, materializada nas punições, não deve ser vista como ações irracionais realizadas por indivíduos que desejam apenas infligir dor àqueles que transgrediram a norma. A punição é um mecanismo de controle das relações sociais locais que opera por meio da vontade criminal e busca impor legitimidade por meio do medo. As punições aplicadas pelo Bonde dos 40, seja por roubo na comunidade ou por quebra de regras menores, como “bagunçar” na comunidade, utilizam a violência como dispositivo de poder, imposta tanto pelo uso de armas como pela ameaça de usá-las.
Com isso, compreendemos que os grupos criminais, como o Bonde dos 40, visam estabelecer e defender os limites de seus territórios, exercer sua dominação e impor normas dentro desses territórios. Para tanto, é fundamental que demonstrem capacidade de exercer força física, o que pode ser manifestado de diversas formas, como no número de membros ativos e no poder de fogo de suas armas, tornando-os uma ameaça real. Com essa capacidade, são capazes de excluir grupos armados concorrentes, sejam eles outros grupos criminosos ou a polícia (Briceño-León, 2017).
No entanto, acreditamos que o uso da violência armada e a capacidade do grupo para exercer força física, ainda que seja fundamental, não parecem ser os únicos elementos que explicam por que o senso de justiça do Bonde dos 40 está cada vez mais integrado ou mesmo disputando com outras instituições, como a justiça estatal, o papel de intermediador de conflitos nas comunidades onde a facção atua.
A justiça criminal da facção utiliza componentes muito mais tênue na disputa pelas normas de convivência. Um exemplo disso é a reivindicação de uma justiça que, por vezes, opera muito próxima ao senso de justiça das pessoas comuns. Nesse aspecto, esse senso de justiça é sustentado por ações muito mais eficientes e céleres do que a justiça oficial, que é percebida pelos moradores dessas comunidades como sempre lenta, tardia e distante.
O senso de justiça produzido e reproduzido pelos agentes criminais inseridos em facções criminais está ancorado, como aponta Jara (2021), em valores comunitários que lhes conferem sentido e legitimidade. Essa justiça se baseia em princípios de justiça popular que são realizados sem intermediários para aqueles que ofendem seus princípios morais. Portanto, é fundamental investigar esse senso de justiça para entender o fenômeno criminal realizado pelas facções, principalmente quando suas atuações se expandem e ganham visibilidade pública, como nos diversos episódios que protagonizam.
Quando as pessoas se submetem à justiça das armas imposta pelo poder faccional e aceitam a mediação dos conflitos através do senso de justiça faccional, acabam incorporando esses valores e práticas em seu cotidiano. Nesse contexto, a justiça imposta pelo grupo faccional também se torna um instrumento para manter a ordem social local.
Com base nisso, podemos inferir que a aproximação com o universo valorativo formulado no mundo do crime, que confere legitimidade às mediações dos conflitos, tem sido um dos principais fatores que fazem com que “bandidos” nesses territórios construam laços de aliança cada vez mais fortes e duradouros com as pessoas comuns, compostas por famílias e trabalhadores que não possuem envolvimento com o crime.
Nesse sentido, compreendemos que o surgimento de uma justiça criminal com características próximas à justiça popular representa uma reivindicação por parte de agentes criminais, que se veem responsáveis pela garantia da ordem em espaços marginalizados onde concepções como cidadania e democracia são valores distantes. Portanto, com base no que foi exposto, podemos afirmar que regimes normativos que se baseiam em estruturas violentas têm apresentado capacidade de criar e recriar ordenamento social, bem como construir e organizar a vida. Com isso, este artigo ajuda a desnaturalizar pressuposições que afirmam que grupos criminais são apenas locus causadores de violência e desordem social.
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1 O Complexo Penitenciário de Pedrinhas, hoje Complexo Penitenciário São Luís, fica localizado no povoado de Pedrinhas, distante 15 km da região urbana de São Luís. Integram o Complexo o Presídio feminino; o Centro de Custódia de Presos de Justiça de Pedrinhas (CCPJ); a Casa de Detenção (Cadet); o Presídio São Luís I e II; o Centro de Triagem e o Centro de Detenção Provisória de Pedrinhas (CDP).
2 “As categorias ‘proibido’ e ‘proibidão’ são frequentemente acionadas para fazer referência aos funks que abordam a temática da sexualidade de forma explícita – funk putaria – ou aos que produzem narrativas sobre o universo da criminalidade, tangenciando o cotidiano e as sociabilidades ligadas à noção de bandido” (Novaes, 2016:11).
3 “O salve geral é um recado que sai de dentro das penitenciárias em forma de ordem ou pedido que todos os adeptos de uma determinada facção se solidarizem com o que está acontecendo no cárcere. A forma de demonstrar a solidariedade é promovendo atentados pela cidade a fim de fazer o governo ceder a negociações que melhorem a situação carcerária” (Silva, 2020:424).
4 O termo “ideias” é utilizado aqui no sentido proposto por Biondi (2018), que se refere a um conjunto de ideias e estratégias que emergem de embates pela manutenção, fortalecimento e transformações de situações. Essas ideias e estratégias são construídas e disputadas pelos membros do grupo, e são influenciadas pelas condições e contextos em que esses grupos operam. Dessa forma, as “ideias” que circulam entre os membros do Bonde dos 40 são uma forma de organizar e controlar a atividade criminal, e são constantemente negociadas e redefinidas pelos membros da facção.
5 A expressão “boca de fumo” ou simplesmente “boca” é amplamente utilizada no Brasil para designar o local de venda de drogas ilícitas, que pode ser fixo ou móvel. Esses pontos de venda são geralmente encontrados em áreas de baixa renda e têm sido alvos frequentes de ações policiais e operações de combate ao tráfico de drogas.
6 A expressão “dono de boca de fumo” ou simplesmente “dono” refere-se à pessoa que controla a venda de drogas em uma determinada boca de fumo, que é o local onde ocorre a comercialização de drogas ilícitas. Em São Luís, as atividades de um “dono de boca” dizem respeito somente ao seu local de venda.
7 O Bonde dos 40 possui uma hierarquia composta por várias funções, além do Disciplina. O primeiro nível dessa hierarquia é o “Conselho de Finais”, que é dividido em primeiro e segundo escalão e é responsável pelas decisões de comando do grupo. Em seguida, temos o “Geral do Estado”, responsável por intermediar as relações dos Torres de cada bairro ou cadeia com a cúpula, além de mediar conflitos que os Torres e os Disciplinas não conseguem resolver. O terceiro nível é ocupado pelos “Torres”, que são as autoridades da facção para uma região ou cadeia. Eles estão acima do Disciplina e normalmente são responsáveis por receber as contribuições financeiras dos membros das facções de cada região ou cadeia para a caixinha e repassá-las à cúpula da organização. Finalmente, o nível mais baixo da hierarquia é ocupado pelos “Soldados”. Eles são responsáveis pelo tráfico de drogas, arrecadação de dinheiro com roubos e furtos, segurança dos bairros e execução de membros de facções rivais ou outros desafetos, muitas vezes até da própria organização. Quando os outros membros da facção descumprem as regras, recebem ordens do Disciplina para executar as ordens. (Silva, 2020; Lopes, 2022).
8 “Certo” aqui tem o mesmo sentido atribuído por Biondi (2018) que para ela, no contexto do PCC, é uma noção com várias dimensões e camadas e que está relacionada as noções de ética, disciplina, justiça, lei. A noção de “certo”, nessa abordagem, não é definida de antemão, mas sim em situações em que há uma luta pelo justo e certo. “Estar pelo certo [...], é o mesmo que estar na disciplina, e ambos são o resultado da luta incessante expressa pelo termo justiça. Nesse sentido, as noções de disciplina (ou ética), justiça e certo estão não só imbricados umas nas outras como se constituem mutuamente” (BIONDI, 2018:358).
9 “A ‘caixinha’ é uma forma de autofinanciamento que as facções recorrem para criar fundos para prestar auxílios para membros em dificuldades, viabilizar transportes para familiares realizarem visitas, comprar armas, dentre outras tarefas e atividades. Cada membro batizado ou “boca” que seja associada com a facção é obrigado a contribuir. Cada facção pode ter regras específicas sobre quem deve e quanto deve pagar a caixinha. Algumas facções cobram a caixinha apenas para os “irmãos” que estão na rua, em liberdade, como faz o PCC, que chama o financiamento de “cebola”. O Bonde dos 40, no que lhe concerne, cobra a “caixinha” para todos os membros, incluindo os membros que estão presos” (Lopes, 2022:81).