Volumen 32 Nº 2 (abril-junio) 2023, pp.278-298
ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.8075520
A guinada (radical) à direita: uma análise da ascensão do bolsonarismo como fenômeno político populista
*Éverton Garcia da Costa y **Gabriel Bandeira Coelho
Resumo
Após 14 anos de hegemonia de esquerda do Partido dos Trabalhadores (PT), o Brasil testemunhou o surgimento de uma onda conservadora de direita, liderada principalmente pelo atual (2022) presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Diante desse cenário, o presente artigo tem como objetivo analisar os principais motivos que levaram à sua eleição, a fim de entender o bolsonarismo como um fenômeno político populista. Com base nos pressupostos teóricos do pensamento de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe sobre populismo, sustenta-se que o surgimento de Bolsonaro não é por acaso, mas sim resultado de um processo hegemônico de discurso populista de extrema direita, em um contexto de recessão econômica, descrédito popular nas instituições políticas democráticas nacionais e polarização ideológica, fenômenos em alta quando das eleições brasileiras de 2018.
Palavras-chave: Bolsonarismo; Populismo; Pós-fundacionalismo; Política Brasileira; Hegemonia; Antagonismo
*Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul Rio Grandense. Pelotas, RS, Brasil
E-mail: eve.garcia.costa@gmail.com / ORCID: 0000-0002-4446-2173
**Instituto Federal Catarinense. Santa Catarina, Brasil
E-mail: gabrielbandeiracoelho@yahoo.com.br / ORCID: 0000-0002-4046-6812
Recibido: 05/10/2022 Aceptado: 11/03/2023
Road (radical) on the right: an analysis of the rise of bolsonarism as a populist political phenomenon
Abstract
After 14 years of left-wing hegemony of the Workers’ Party (PT), Brazil is today witnessing the rise of a conservative far-right wave, led mainly by the current president of the Republic, Jair Messias Bolsonaro, of the Liberal Social Party (PSL). Rather than making a positive or negative critique of Jair Bolsonaro’s government, this article aims to analyze the main reasons that led to the election of the PSL politician, with the aim of understanding pocketship as a political phenomenon. Based on the theoretical assumptions of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe’s thinking about populism, we argue that Bolsonaro’s rise does not occur at random. Before that, it is the result of a process by which a hegemonic populist discourse of the far right was constructed, in the context of a context of economic recession, popular discredit in national democratic political institutions and ideological polarization
Keywords: Bolsonarism; Populism; Post-foundationalism. Politics Brazilian; Hegemony; Antagonism
Introdiucao
Da mesma forma como o dia 27 de outubro de 2002 entrou para a história do Brasil com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), primeiro presidente considerado de esquerda do país, também entra para os anais da história o dia 28 de outubro de 2018, marcado pela vitória na corrida presidencial do ex-deputado federal Jair Messias Bolsonaro, à época filiado ao Partido Social Liberal (PSL), representante da extrema direita brasileira.
Apesar dos altos índices de rejeição popular –na casa dos 40% –apontados pelas pesquisas eleitorais, de contar com apenas oito segundos de tempo para propaganda eleitoral obrigatória na TV e no rádio durante o 1º turno das eleições, e de não ter comparecido aos debates presidenciais organizados pela mídia, Bolsonaro conseguiu eleger-se presidente do Brasil com 55% dos votos válidos, derrotando no segundo turno o candidato do PT, Fernando Haddad. Impulsionada pelo “fenômeno Bolsonaro”, a bancada do PSL, que nas eleições de 2014 elegeu apenas um deputado federal, conseguiu eleger 52 congressistas nas eleições de 2018, tornando-se a segunda maior bancada da Câmara. O partido, que também nunca havia eleito um senador, conseguiu eleger quatro em 2018. Além disso, Jair Bolsonaro também impulsionou a eleição de seus filhos: Eduardo Bolsonaro, eleito deputado federal pelo estado de São Paulo com a maior votação na história do país, e Flávio Bolsonaro, senador mais votado pelo estado do Rio de Janeiro. Com efeito, após vivenciar 14 anos de hegemonia de esquerda do PT, com as eleições de Lula em 2002 e 2006, e Dilma Rousseff em 2010 e 2014, o Brasil assistiu –sobretudo a partir das manifestações de Junho de 2013, culminando com o resultado das urnas em 2018– à ascensão de uma onda conservadora de extrema direita, cunhada de “Bolsonarismo”.
Diante dessa realidade, o objetivo deste artigo, muito mais do que tecer uma crítica positiva ou negativa ao governo Bolsonaro, é buscar analisar as principais razões que levaram à sua eleição e, principalmente, à ascensão da atual onda conservadora de extrema direita no país. Nesse sentido, o intuito central do artigo é buscar compreender como o bolsonarismo se constrói como discurso político hegemônico populista, nos termos considerados por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, no âmbito de um país que foi governado durante quatorze anos pela esquerda (PT).
Para desenvolver tal reflexão, o texto transita entre os referenciais teóricos pós-estruturalista e pós-fundacionalista sobre a noção de populismo desenvolvida por Ernesto Laclau (2006) e Chantal Mouffe (2014; 2019) por acreditarmos que as bases epistemológicas não essencialistas da teoria do discurso têm contribuído significativamente à compreensão do fenômeno populista de extrema direita. Nesse sentido, o argumento defendido é que a eleição de Bolsonaro, em 2018, se deve a um processo de construção de um discurso político hegemônico baseado numa lógica “nós contra eles”, através do qual o ex-deputado federal conseguiu se alçar como líder populista, articulando ao redor de si um conjunto de demandas populares, tornando-se um representante não só da extrema direita, mas sobretudo daquela parcela da população que passou a nutrir um forte sentimento antipetista diante dos escândalos de corrupção em que o PT se envolveu, bem como no contexto de uma severa recessão econômica.
Por fim, faz-se necessário salientar que o debate apresentado neste artigo não é inédito. Outros trabalhos já realizaram análises semelhantes, tais como Maitino (2020), Parzianello (2020), Nascimento e Braga (2021), Silva e Machado Rodrigues (2021), Mendes e Silva (2022), Xavier (2022) e Mendonça (2022). Não é nossa intenção pormenorizá-los, mas reconhecê-los como referências importantes à contenda que utiliza a teoria do discurso de Laclau e Mouffe como lente teórica para compreender o fenômeno do populismo de extrema direita, especialmente aquele corporificado na figura de Jair Bolsonaro. De todo modo, nossa intenção com este trabalho é o de produzir mais uma contribuição a tal discussão, haja vista que ela é recente e não está esgotada.
As eleições de 2018 e a conjuntura nacional brasileira
A conjuntura político-nacional em que ocorreram as eleições de 2018 no Brasil é marcada por um cenário representado por, pelo menos, quatro características centrais: a) radicalização da polarização ideológica esquerda/direita; b) recessão econômica marcada, sobretudo, pelas altas taxas de desemprego; c) descrédito popular nas instituições e no sistema político nacional, em decorrência de inúmeros escândalos de corrupção; d) altas taxas de violência urbana (65.602 homicídios em 2017, cerca de 14% dos homicídios em todo mundo). É neste ambiente social que a esquerda brasileira começa, entende-se, a perder seu lugar hegemônico, ao mesmo tempo em que a extrema direita emerge com vigor ao conseguir articular as principais demandas de boa parte da população brasileira à época, especialmente as de combate à corrupção e à violência.
É preciso destacar, inicialmente, que desde 2014, ano em que Dilma Rousseff se reelegeu no segundo turno das eleições com uma pequena margem de diferença de votos, o cenário político brasileiro tem se caracterizado pela divisão ideológica da opinião pública em dois polos antagônicos, que podem ser caracterizados genericamente como petismo/antipetismo ou simplesmente esquerda/direita –o que caracteriza o antagonismo “Nós x Eles”, principal condição à formação de um campo discursivo. Tal oposição foi amplamente destacada pela mídia entre os anos de 2018 e 2019, por exemplo.
Após campanha radicalizada, um país dividido vai às urnas (Jornal O Globo, 7/10/2018).
Desde 2013 [...] o Brasil vive dividido numa radicalização ideológica cada vez mais cega. (Jornal Gazeta do Povo, 24/06/2019).
Os usuários brasileiros do Facebook se tornaram fortemente polarizados em apenas dois grupos com muito pouca sobreposição: progressistas e conservadores (Revista Galileu, 10/08/2018).
O Brasil está dividido. A disputa política, sempre tradicionalmente rasteira e pessoal, atingiu tons de campeonato de futebol – e com torcedores hostis por todos os lados (Yahoo Notícias, 23/10/2018).
Polarização política no Brasil supera média de 27 países (Jornal Estadão, 14/04/2019).
Radicalismo político no Brasil supera média global (Revista Veja, 14/04/2019).
As raízes que conduziram a essa polarização ideológica da opinião pública nacional em dois polos antagônicos, na verdade, são anteriores às eleições de 2014: encontram-se nas Manifestações de Junho 2013. Vale lembrar, que durante aquela onda de protestos que se espalhou pelo país motivada pelo aumento do preço nas passagens do transporte coletivo e pelos gastos excessivos com as obras para a Copa do Mundo e as Olimpíadas, dentre outras inúmeras demandas, os manifestantes já estavam claramente divididos em dois grupos: 1) aqueles que saíram às ruas vestidos com roupas e bandeiras de partidos de esquerda e de movimentos sociais; e 2) aqueles que defendiam uma manifestação “sem partido”, e por isso, vestiam-se de verde e amarelo, cores da bandeira nacional, como evidenciam as reportagem da época:
Na avenida Paulista, a manifestação se dividiu em alguns blocos distintos: em um deles, as pessoas hostilizam e protestam contra partidos políticos, a corrupção e gastos excessivos para as obras da Copa do Mundo. Os ativistas desse grupo gritam palavras de ordem contra a presidenta Dilma Rousseff, o prefeito Fernando Haddad, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. [...]
A manifestação do segundo grupo, encabeçado pelo Movimento Passe Livre (MPL), partidos políticos e movimentos sociais foi encerrada na praça Oswaldo Cruz. Nesse grupo estavam os movimentos estudantis, membros de partidos como o PSTU, o PSOL e o PT, o movimento gay e a Central de Movimentos Populares (Portal iG Último Segundo, 21/06/2013)
No Rio de Janeiro, os manifestantes se concentraram na Candelária. Antes do início da passeata, cerca de 20 militantes da CUT (Central Única dos Trabalhadores) foram expulsos da concentração para o protesto. Pressionados pela multidão que gritava ‘Sem partido’, os militantes deixaram o local pela rua da Quitanda (Portal UOL Notícias, 20/06/2013).
Em 2014, ano da Copa do Mundo realizada no Brasil, essa cisão ideológica se intensificou. Naquele momento, a disputa antagônica era travada entre a parcela da população que defendia a reeleição da presidenta Dilma Rousseff, e aquela que exigia a saída do PT do comando do país. Tal disputa evidenciou-se nas urnas: Dilma foi reeleita, mas com 51,64% dos votos válidos, contra 48,36% do candidato Aécio Neves, do PSDB.
A polarização ideológica nacional se radicalizou, de fato, a partir de 2015, com os desdobramentos da Lava Jato. A operação conduzida pela Polícia Federal evidenciou um problema crônico do Brasil e que ocorre em todas as esferas públicas (municipal, estadual e federal): a corrupção. A Lava Jato trouxe à tona um gigantesco esquema de desvio de dinheiro público envolvendo agentes políticos, funcionários públicos e executivos de grandes empresas e que teria causado um rombo estimado em aproximadamente R$ 20 bilhões aos cofres da Petrobras. No centro das denúncias estavam figuras políticas importantes de partidos como PT, PMDB e PP, principalmente, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, apontado pelo Ministério Público Federal como o “comandante máximo do esquema de corrupção identificado na Lava Jato”.1 Independente da inocência ou não do ex-Presidente, a retórica que o ligava, juntamente com o PT, ao estigma de “ladrão”, já cumpria seu papel de difamação.
Como se não bastasse este cenário de desmoralização das instituições políticas, produto, especialmente, da operação Lava-Jato, o Brasil mergulhou, ainda, em uma grave recessão econômica. Os primeiros indícios dessa crise datam de 2014, ano em que o Produto Interno Bruto (PIB) apresentou um crescimento de apenas 0,5%, pior resultado desde 2009, ano marcado pela crise financeira internacional. No ano seguinte, o PIB teve uma retração de 3,5%, pior resultado histórico desde 1990. A taxa de desemprego, que havia fechado 2014 em 4,8%, subiu para quase 8% em 2015. Pela primeira vez, desde 2002, a inflação fechou o ano acima dos 10%. O dólar, por sua vez, registrou um crescimento superior a 48%, fechando o ano em R$ 3,94, maior valor registrado desde 2002.2 Além disso, o déficit primário registrado nas contas públicas foi de R$ 116 bilhões. Em 2016, a situação piorou: a taxa de desemprego subiu para 12%, pelo segundo ano consecutivo o PIB foi negativo, e a moeda americana alcançou seu maior valor na história registrado até então: R$ 4,16. Soma-se a esse cenário de caos econômico uma greve organizada pelos caminhoneiros em fevereiro de 2015, contra o reajuste no preço dos combustíveis promovido pela Petrobras, que paralisou o Brasil durante duas semanas, afetando inúmeros serviços, consolidando a revolta de boa parte da população contra o governo Dilma.
A este cenário de crise financeira somam-se os números estarrecedores que fazem do Brasil um dos países mais violentos do mundo. Segundo dados do Atlas da Violência 2018, foram cometidos 62.517 assassinatos no território brasileiro em 2016 – número 30 vezes maior do que o da Europa e 14% acima do registrado em 2006 (Cerqueira 2018). O relatório também destaca, que na última década, mais de meio milhão de brasileiros foram vítimas de homicídio, o que representa uma média superior a 150 mortes violentas por dia.
O resultado dessa conjuntura foi um país imergido em uma profunda crise político-moral que levou a perda da hegemonia do PT na paisagem política (e consequentemente da esquerda), ao menos no que diz respeito, sobretudo, ao cargo do executivo nacional. Entre 2015 e 2016, registraram-se em todo o país diversas manifestações populares que exigiam o afastamento de Dilma. Tal pressão popular, dentre outros motivos, fez com que a presidente perdesse o apoio da base aliada no Congresso, fato que impediu a aprovação de projetos e sufocou de vez o governo petista. Em março de 2016, 70% dos brasileiros consideravam o governo Dilma ruim ou péssimo. Nesse contexto, o impeachment tornou-se inevitável. No lugar de Dilma, assumiu o então vice-presidente da República, Michel Temer, do MDB, que logo se viu também em meio a um escândalo de corrupção, sendo denunciado pela Procuradoria Geral da República (PGR) como o grande líder de uma organização criminosa que evolveu o desvio de milhões de reais de dinheiro público.
No âmbito desta conjuntura político-nacional começaram a adquirir destaque as vozes de políticos e figuras de extrema direita, tendo como principal representante o então deputado federal Jair Bolsonaro. Cabe destacar, ainda em tempo, que anterior à ascensão do bolsonarismo do Brasil, o país viveu, desde a redemocratização uma polarização mais branda entre PT e PSDB, nas figuras de Lula e FHC (Fernando Henrique Cardoso). Para parte da população brasileira, já não era possível encontrar uma solução para suas demandas no âmbito do que consideravam a “velha política”. Fazia-se necessário, portanto, algo novo que, de fato, aglutinasse o anseio do “povo” por melhorias no país, em especial na economia e no combate à violência e à corrupção.
Algumas das (possíveis) razões do voto em bolsonaro no pleito de 2018
Jair Bolsonaro é um capitão militar da reserva que se tornou conhecido nacionalmente em 1986, quando escreveu para a Veja –revista de maior circulação no país– um artigo intitulado “O salário está baixo”, no qual criticou a baixa remuneração dos oficiais do exército. Por escrever esse artigo, Bolsonaro foi preso durante 15 dias sob acusação de “transgressão grave”. Em 1987, uma reportagem publicada pela mesma revista revelou que Bolsonaro e um amigo, também militar, haviam construído um plano para explodir bombas em unidades militares do Rio de Janeiro no intuito de pressionar os comandantes. Apesar de a reportagem apresentar uma série de supostas evidências, inclusive um rascunho do plano que teria sido feito à mão pelo próprio Bolsonaro, ele acabou absolvido da acusação pelo Superior Tribunal Militar.3
No final da década de 1980, Bolsonaro decidiu ingressar na vida pública. Em 1989, elegeu-se vereador na cidade do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão (PSC). Um ano depois, em 1990, foi eleito o deputado federal mais votado pelo estado do Rio de Janeiro, sendo reeleito por seis mandatos consecutivos. Ao longo de quase 30 anos como deputado federal, a carreira de Jair Bolsonaro foi marcada por inúmeras declarações polêmicas. Em 2003, Bolsonaro proferiu a seguinte afirmação à deputada Maria do Rosário (PT): “Jamais iria estuprar você, porque você não merece”. Nesta mesma ocasião, Bolsonaro também chamou a deputada de “vagabunda”. Em virtude dessa fala, o ex-deputado federal tornou-se réu no STF sob a acusação de apologia ao estupro. Em 2011, em entrevista à revista Playboy, Bolsonaro fez a seguinte declaração: “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”. Em outra ocasião, ele afirmou que: “Se eu ver dois homens se beijando na rua, vou bater”. Bolsonaro também é conhecido por suas declarações em defesa da ditadura militar de 1964. Vale lembrar, que ao proferir seu voto durante o processo de impeachment da presidente Dilma, Bolsonaro afirmou que seu voto era “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, primeiro militar condenado no país pela prática de tortura durante o governo militar. Bolsonaro também foi acusado de racismo, quando ao narrar sua visita feita a um quilombo no estado de São Paulo, declarou o seguinte: “Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador eles servem mais”.
Se por um lado tais declarações levaram Bolsonaro a ser rejeitado por parte do eleitorado brasileiro, especialmente, entre a esquerda, por outro, ele sempre teve um amplo apoio do eleitorado de extrema direita. Tanto é que Bolsonaro não apenas foi eleito sete vezes consecutivas como deputado federal, como também alavancou a carreira política dos filhos e de alguns políticos aliados. Além disso, justamente em virtude de suas declarações polêmicas, bem como de sua participação ativa em programas de rádio e TV, e também na internet, é que Bolsonaro se tornou o grande representante e porta voz do movimento antipetista que se fortaleceu no país e que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016.
É importante destacar, nesse sentido, que uma pesquisa4 de intenção de voto realizada pelo Instituto Datafolha uma semana antes do segundo turno das eleições de 2018 apontou que as principais razões de voto em Bolsonaro eram: 1) desejo de renovação e mudança no poder (30%) e 2) rejeição ao PT (25%), como revela o quadro a seguir:
Quadro 1 - Principais razões de voto no 2º turno em Jair Bolsonaro
Razão |
% |
Desejo de renovação e mudança no poder |
30% |
Rejeição ao Partido dos Trabalhadores |
25% |
Propostas para a segurança |
17% |
Imagem e valores pessoais do candidato |
13% |
Fonte: Instituto Datafolha.
Como revela o quadro acima, a principal razão de voto em Bolsonaro, segundo a pesquisa Datafolha, foi o desejo de renovação e mudança no poder. Dentro desse grupo percentual estão localizadas respostas como: alternância no poder; dar oportunidade a um novo candidato; tentar um candidato que nunca foi presidente. O desejo de renovação se vincula diretamente com a segunda principal razão de voto, isto é, a rejeição ao PT. A pesquisa Datafolha revela que nesse grupo estão articuladas razões como: não quer o governo do PT de volta; não gosta ou tem rejeição ao PT; antipetismo; acha que o PT está há muito tempo no poder; quer acabar com o monopólio do PT; decepção pelos escândalos de corrupção envolvendo o PT.
Nesse sentido, se forem somadas as duas principais razões de voto em Bolsonaro, ocorre que a grande maioria do eleitorado que votou no candidato do PSL não queria o retorno do PT ao comando do país, seja pelo desejo de renovação/alternância do poder, ou então, pelo sentimento de antipetismo e de rejeição ao partido.5
O terceiro principal grupo de razões de voto em Bolsonaro é o que diz respeito às suas propostas para a segurança. Os entrevistados que mencionaram a segurança como principal motivação para justificar seu voto no candidato do PSL acreditavam que ele iria: melhorar a segurança; acabar/combater/diminuir a violência; liberar o acesso às armas; reduzir a maioridade penal; melhorar o policiamento ou torná-lo mais enérgico. É preciso destacar que essa parcela do eleitorado foi decisivamente influenciada por algumas das principais promessas de campanha de Bolsonaro, como por exemplo, redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, reformulação do Estatuto do Desarmamento no sentido de flexibilizar o porte e a posse de armas, e a adoção do excludente de ilicitude nas atuações policiais. Vale frisar que em dez meses de governo (2019) Bolsonaro conseguiu, por meio de decretos, alterar o Estatuto do Desarmamento em prol da flexibilização à posse de armas. Contudo, até o presente momento (julho de 2022), a discussão sobre maioridade penal parece ter perdido folego no âmbito do executivo. Já a alteração na Constituição, referente ao excludente de ilicitude, presente no chamado “Pacote anti-crime” do ex-Ministro da Justiça Sérgio Moro, não logrou apoio suficiente no Congresso para ser aprovado.
Por fim, o quarto principal grupo de razões de voto em Bolsonaro é aquele que faz referência à imagem e aos valores pessoais do candidato. Segundo a pesquisa do instituto Datafolha, nesse grupo estão inseridos motivos como: a valorização da família; o não envolvimento de Bolsonaro em casos de corrupção; seu caráter íntegro/honesto/sincero; o transparecimento de confiança e credibilidade. É importante destacar, que como deputado federal, Bolsonaro integrou a chamada “Bancada Evangélica”, frente parlamentar composta por políticos vinculados a igrejas evangélicas e que representa quase um quinto do total parlamentares do país. Nos últimos anos, a Bancada Evangélica apresentou um grande crescimento, se posicionando contra temas polêmicos, como por exemplo, a legalização do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a descriminalização das drogas, e a favor de valores supostamente cristãos e em defesa da família. Tais valores estavam, em 2018, diretamente representados no plano de governo de Bolsonaro. Vale lembrar, inclusive, que a coligação do candidato foi intitulada “Brasil acima de tudo, Deus acima de Todos”.
Como se pode observar, a eleição de Bolsonaro não se constrói ao acaso. Bolsonaro não apenas se elegeu presidente, como também impulsionou a carreira política dos três filhos e alavancou o PSL como um dos principais partidos do país, porque conseguiu articular ao redor de si uma série de demandas populares, concorde-se com elas ou não. Desse modo, apesar de suas declarações polêmicas, do pouco tempo de exposição no rádio e na TV durante a propaganda eleitoral e do grande índice de rejeição, ele conseguiu alçar a extrema direita ao comando do país após 14 anos de hegemonia da esquerda.
Do antipetismo ao bolsonarismo: a construção de um discurso populista hegemônico
A eleição de Jair Bolsonaro e a ascensão de uma onda conservadora de extrema direita deram-se a partir da construção de um discurso político populista, que demarcou uma fronteira antagônica entre o povo (nós) e os inimigos do povo (eles). Nesse sentido, o antagonismo é caracterizado por Laclau (1993) a partir de duas funções cruciais. Por um lado, ele bloqueia a constituição plena da identidade a qual faz oposição. Por outro lado, ao mesmo tempo em que o antagonismo limita a plenitude de uma identidade, também é condição de existência desta, uma vez que toda identidade é relacional e só existe diante da força a qual se antagoniza (Laclau, 1993). Em resumo, o discurso bolsonarista só é possível através da construção de seu oposto, de seu inimigo; neste caso a esquerda brasileira ou o “petismo”. É por este motivo que todo discurso precisa criar um inimigo a ser combatido para, assim, constituir-se como representante universal das demandas políticas que emergem no campo discursivo.
Tal argumento elencado acima também está presente em Maitino (2020), para quem, ao analisar a construção ideológica do bolsonarismo a partir do conceito de populismo de Laclau, busca compreender como as articulações em torno do populismo bolsonarista têm se mantido unidas mediante a um embate moral na figura do “cidadão de bem”. Esta moralidade, para o autor, configura a chave da articulação em torno da figura de Bolsonaro como líder populista, propondo o conflito entre “tudo que está aí”6 versus “o cidadão de bem” (Maitino, 2020). Portanto,
Por meio de associações entre moralidade privada e pública e de oposições à esquerda e à ‘velha política’, a ideologia da direita bolsonarista procura construir a imagem de um povo harmônico e sem divisões, ameaçado por um sistema corrupto e uma esquerda onipresente, que tentam destruir seus valores e enriquecer às suas custas. Com o apoio dos ‘cidadãos de bem’, Bolsonaro rebela-se contra o sistema e busca regenerar a política e a cultura brasileira (Maitino, 2020, p. 16).
Tendo isso em vista, algumas considerações sobre o populismo precisam ser tecidas. Em primeiro lugar, é imprescindível destacar que no imaginário político contemporâneo, sobretudo na América Latina, o termo “populismo” é de uso recorrente e bastante generalizado, estando associado aos mais diversos sentidos pejorativos. Conforme destaca Mendonça (2017), tanto no meio acadêmico, quanto no meio político, o populismo tornou-se uma espécie de persona non grata:
Em ambos os contextos, tradicionalmente este termo tem sentido pejorativo. De uma forma geral, para os seus críticos, o populismo está ligado a uma relação direta entre líder e massa, a qual não somente desconsidera, mas também desafia o funcionamento das instituições. O populismo é igualmente percebido como resultado de um subdesenvolvimento da democracia representativa liberal de determinados Estados. Além do mais, o populismo é também acusado de representar a manipulação das massas ignorantes por um líder inescrupuloso que promete representá-las, mas que, na verdade, representa somente a si próprio. Essas diversas acusações contra o populismo vêm tanto da direita liberal, como de diversos setores da esquerda (Mendonça, 2017: online).
Segundo Ernesto Laclau (2006), autor de A razão populista, o populismo se caracteriza, antes de tudo, como um fenômeno complexo, de natureza eminentemente política. Para o pensador argentino, ao contrário do que comumente se prega, o populismo não deve ser visto pejorativamente como a mera tentativa de um líder popular em enganar e controlar as massas para se manter no poder; da mesma forma, o populismo também não está vinculado a ideologias à esquerda ou à direita. O “populismo é, simplesmente, um modo de construir o político” (Laclau, 2006: 11); é um caminho através do qual se pode tentar compreender como o político se constitui enquanto tal.
O populismo, defende Laclau, é um fenômeno que diz respeito à formação das identidades coletivas. É o resultado da articulação de um conjunto de demandas em torno da figura de um líder popular e carismático, que constrói um antagonismo entre o povo (o qual o líder obviamente representa) e os inimigos do povo. Desse modo, em linhas gerais, a concepção de populismo laclauniana “é a construção do povo contra o seu inimigo” (Mendonça, 2017: online); é um discurso que demarca uma diferença, uma fronteira antagônica entre nós/eles. Em síntese, conforme ressalta Mouffe (2018):
Laclau define o populismo como uma estratégia discursiva de construção de uma fronteira política que divide a sociedade em dois campos e convoca a mobilização dos ‘de baixo’ contra ‘aqueles no poder’. Não é uma ideologia e não se pode lhe atribuir um conteúdo programático específico, tampouco constitui um regime político. É um modo de fazer política que pode adotar diversas formas ideológicas em função do momento e do lugar e que é compatível com uma variedade de marcos institucionais. Podemos falar de um ‘momento populista’ quando, diante da pressão de transformações políticas ou socioeconômicas, a multiplicação de demandas insatisfeitas desestabiliza a hegemonia dominante (...) O bloqueio histórico que constitui a base social de uma formação hegemônica começa a se desarticular e surge a possibilidade de construção de um novo sujeito de ação coletiva – o povo – capaz de reconfigurar uma ordem social experimentada como injusta (Mouffe, 2018: 24-25)7.
Não se pode perder de vista que na abordagem de Ernesto Laclau, o povo é um significante vazio, ou seja, é uma categoria que não possui uma essência, um sentido absoluto e invariável. “Povo” é uma construção discursiva realizada no âmbito de um dado contexto histórico, político, econômico e cultural. Assim, a ideia de povo construída durante o governo soviético certamente difere muito da ideia norte-americana de povo construída durante o governo Bush, pós o “11 de setembro”, por exemplo. Justamente por ser uma categoria “vazia”, a categoria “povo” é uma noção mobilizada pelos mais diferentes tipos de governos, tanto à esquerda quanto à direita, dos mais autoritários aos mais liberais, apresentando diferentes e inúmeros significados.
Isto ocorre, segundo Laclau (1993), porque o simples fato de um discurso mostrar-se como encarnação de plenitude não basta para assegurar sua aceitação como representante das demandas sociais. Laclau cita como exemplo a vitória do partido nazista na Alemanha da primeira metade do século XX, a qual foi possível, pois esse discurso foi o único capaz de lograr com que o conjunto das classes médias, à época, se sentisse representada por ele. Sua vitória, diz Laclau, ocorreu como resultado da disponibilidade do discurso nazista em uma arena em que nenhum outro discurso conseguiu se transformar em uma alternativa hegemônica real. Deste modo, em relação à disponibilidade de um determinado discurso para tornar-se hegemônico e representar os anseios do “povo” é seminal ressaltar que:
Em muitas ocasiões o discurso de uma ‘nova ordem’ é aceito por numerosos setores, não porque eles se sentem particularmente atraídos por seu conteúdo concreto, senão porque é o discurso de uma ordem, de algo que se apresenta como alternativa credível frente à crise e à deslocamentos generalizados (...) Isto não significa que todo discurso que se apresente como encarnação da plenitude será aceito. Sua aceitação depende de sua credibilidade e esta credibilidade não será acordada se suas propostas se chocarem com os princípios básicos que formam a organização de um grupo (Laclau, 1993: 82).
Para que possamos compreender a ideia de povo como um significante vazio, precisamos recordar um conhecido artigo pulicado por Laclau (2011), intitulado Por que os significantes vazios são importantes para a política?. Neste texto, o pensador argentino argumenta que um significante vazio é uma totalidade que apresenta uma falha estrutural, uma falta constitutiva que somente pode ser suprida por algum conteúdo semântico de maneira muito precária e contingente. Em outras palavras, um significante vazio é aquele que não está vinculado a nenhum conteúdo semântico específico, de maneira que lhe podem ser atribuídos diferentes significados. Toda tentativa de atribuir sentido a um significante vazio, com efeito, se apresenta como um ato parcial.
Pode-se tomar como exemplo a noção de democracia, a qual, sem dúvida, é uma das categorias mais utilizadas em nosso imaginário político. Vale lembrar, dessa forma, que em vários momentos durante a votação do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, os dois lados da disputa –tanto os que votaram a favor do impedimento, quanto os que votaram contra– justificaram seus votos com a alegação de que estavam votando em defesa da democracia brasileira. Isso só foi possível, porque democracia é um dos tantos significantes vazios que integram nosso imaginário político, assim como justiça, emancipação etc. Ou seja, qualquer grupo de sujeitos de determinado campo discursivo em disputa, a partir das demandas que reivindicam, irá dar o sentido que melhor o representa à definição de democracia. Neste caso do impedimento de Dilma Rousseff, em específico, o movimento contra o impeachment defendia a ideia de que a saída da então ex-presidente representava um golpe à democracia; já para o movimento a favor da saída de Dilma, o impeachment representava o fortalecimento da democracia, uma vez que, segundo tais agentes, o Brasil estaria dando um grande passo em direção ao fim da corrupção, a qual representa um desserviço aos Estados democráticos.
Dada a falha na estrutura constitutiva de um significante vazio, nenhum valor semântico consegue fixar-se plenamente, senão de forma muito precária e contingente. Um significante vazio, defende Laclau (2011: 71), é aquele que se esvaziou “de todo vínculo com significados particulares”. E justamente por não estar vinculado a nenhum sentido particular, é que ele pode ser associado aos mais diferentes significados. Este é o caso do conceito de povo, mobilizado ao longo da história tanto por governos de esquerda, quanto de direita.
Para Laclau, os governos populistas nascem, justamente, da construção discursiva da ideia de povo. Segundo ele, o povo, como significante vazio, é uma categoria política construída ao redor da articulação de um conjunto de demandas. Uma demanda, argumenta Laclau, é a menor unidade a partir da qual se começa a analisar o populismo como fenômeno político. Uma demanda, defende o autor, é um termo ambíguo que pode significar tanto uma petição parcial, quanto uma reclamação coletiva. Laclau propõe que tomemos como exemplo uma massa de imigrantes agrários que se estabeleceu em uma região às margens de uma cidade industrial em desenvolvimento. Essa comunidade rural vive em situação de pobreza e miséria, enfrentando uma série de problemas sociais, como a falta de energia elétrica, por exemplo. Alguns dos moradores resolvem, então, reivindicar às autoridades políticas locais uma solução para o problema da falta de energia. Se essa demanda isolada for atendida, a reivindicação acabará ali. Todavia, se a demanda não for atendida, os moradores da comunidade poderão perceber outras demandas igualmente insatisfeitas, como a falta de saneamento básico, a ausência de escolas e hospitais públicos etc.
Se a situação permanecer igual por um determinado tempo, haverá uma acumulação de demandas insatisfeitas e uma crescente incapacidade do sistema institucional para absorvê-las de um modo diferencial (cada uma de maneira separada das outras) e isto estabelece entre elas uma relação equivalencial. O resultado facilmente poderia ser, se não for interrompido por fatores externos, o surgimento de um abismo cada vez maior que separa o sistema institucional da população (Laclau, 2006: 99) [grifos no original].
Agora, imaginemos que neste cenário hipotético de insatisfação popular, no qual se criou uma relação de equivalência entre as demandas isoladas, os imigrantes agrários resolvam realizar um protesto em frente à prefeitura, o qual acaba violentamente reprimido pela força policial. Em um clima como este, de insatisfação e repressão “toda mobilização por um objetivo parcial será percebida não somente como relacionada com a reivindicação ou os objetivos concretos dessa luta, mas também como um ato de oposição ao sistema” (Laclau, 2011: 73). Suponha-se agora que um dos moradores de tal comunidade rural hipotética, igualmente insatisfeito com o descaso do sistema político institucional local, passe a atuar ativamente no sentido de fazer com que a prefeitura solucione os problemas vivenciados pelos moradores. Esse indivíduo organiza protestos, profere discursos em praça pública, mobiliza a comunidade, e inclusive acaba sendo preso por suas atitudes subversivas contra o sistema. Logo, há uma grande possibilidade de que esse indivíduo se torne o grande líder popular que representará a comunidade (o povo) contra as autoridades políticas locais (os inimigos do povo).
É através deste processo de articulação equivalencial de demandas populares que se começa a construir, de forma muito embrionária, as condições para a emergência do populismo como modelo político. O governo populista, defende Laclau (2006), é aquele que consegue tornar homogêneo um terreno vasto de diferenças que caracterizam uma realidade altamente heterogênea. Isso só pode ser realizado com a criação de uma identidade coletiva que consegue representar e articular ao redor de si uma série de demandas parciais. “No limite, este processo chega num ponto em que a função de homogeneização é realizada por um nome próprio: o nome do líder” (Laclau, 2006: 40), o que também é considerado pelo autor como processo de nomeação.
Seguindo esta linha de argumentação, Laclau (2006) aponta algumas pré-condições necessárias para a configuração do populismo. A primeira delas é a demarcação de uma fronteira antagônica entre o povo e o poder político institucionalizado. Assim, o populismo emerge quando os moradores de uma determinada região, insatisfeitos por não terem suas demandas atendidas, não se sentem representados pelo sistema político convencional. A segunda pré-condição, por sua vez, é a articulação equivalencial de demandas parciais. Já a terceira pré-condição é a estabilização destas demandas particulares em um sistema estável de significação. Segundo Laclau, ao mesmo tempo em que o populismo tem como vantagem o fato de conseguir representar um conjunto amplo de demandas, ele tem como desvantagem o fato de não estar vinculado a nenhuma delas especificamente, de modo que “sua conexão com conteúdos particulares tende a ser drasticamente reduzida” (Laclau, 2006: 40), o que pode acabar enfraquecendo a lógica da equivalência. Com efeito, quanto maior a cadeia de demandas articuladas por um sistema discursivo populista, maior será o risco da articulação se tornar frágil e precária, perdendo o seu poder de representação e homogeneização.
A eleição de Bolsonaro, portanto, deu-se baseada nessa lógica, ou seja, através da construção de um discurso hegemônico que claramente demarcou uma fronteira antagônica entre “nós e eles”, entre o “povo” brasileiro, e os inimigos do “povo”. Cabe salientar que não é coincidência Bolsonaro ser chamado de “mito” por seus apoiadores mais entusiasmados. A figura do mito demonstra como a construção hegemônica de um discurso populista é marcada por uma relação psicanalítica de identificação, ou seja, como os sujeitos são sempre sujeitos de uma falta constitutiva, só lhes resta preencher esse vazio buscando representação na figura encarnada pelo líder populista. Foi assim em 2002, quando Lula conseguiu o mesmo efeito nas eleições daquele ano e, posteriormente, em 2006.
Apesar de ter votado a favor de muitas propostas apresentadas à Câmara pelo governo Lula, Bolsonaro tornou-se um dos principais opositores do PT a partir de 2010, com a eleição de Dilma Rousseff. Em 2014, no segundo mandato da então presidente, o discurso antipetista propagado por Bolsonaro se intensificou, de maneira que logo ele se tornou um dos grandes representantes do movimento pró-impeachment.
Como uma presença constante nas mídias tradicionais (rádio, TV, revistas e jornais) e nas mídias digitais, Bolsonaro, aos poucos, construiu discursivamente uma ideia de povo. Essa construção começou pela demarcação de uma fronteira antagônica a qual determinou aquele que seria o principal inimigo do povo brasileiro: o petismo. As declarações proferidas por Bolsonaro assinalavam veementemente que os problemas vivenciados pela população brasileira –como a crise financeira, o desemprego exacerbado, os altos índices de violência, os escândalos de desvio de verbas públicas etc. – eram resultados da incompetência e da corrupção dos governos petistas. Durante uma fala realizada no plenário da Câmara, em 2011, o então deputado federal declarou que “O partido que está no governo [o PT] é um partido profissional, eles lutam em primeiro lugar para continuar no poder e tudo farão para permanecer no poder”. Durante essa fala, Bolsonaro acusou o governo Dilma de distribuir às escolas públicas um “kit gay”.
Nos anos seguintes, esse discurso antipetista se intensificou. Em dezembro de 2014, durante um protesto no qual um grupo de manifestantes contrários ao governo Dilma tentou invadir o Congresso para assistir a uma votação, tendo sido impedidos pela Polícia do Senado, Bolsonaro foi ovacionado ao proferir um discurso contra o PT. Em sua fala, o então deputado federal afirmou que: “Isso aqui é a ditadura do PT. Negar a galeria para vocês é um crime. Se fossem os marginais do MST, o PT tinha botado para dentro. [...]. Com essa turma do PT que está aí, estamos partindo para uma ditadura. [...] A direita vai se fazer presente em 2018”. Os manifestantes presentes, por sua vez, responderam entoando gritos como “Bolsonaro presidente” e “Bolsonaro, guerreiro do povo brasileiro”.8 Em 2016, ano marcado pelo impeachment de Dilma, ao mesmo tempo que as falas de Bolsonaro contra o PT se tornaram cada vez mais duras, sua popularidade aumentava. Assim, em suas viagens realizadas pelo país, tornou-se comum vê-lo ser recepcionado por centenas de apoiadores. Em janeiro daquele ano, por exemplo, vestindo uma camiseta com a mensagem “Direita Já”, Bolsonaro foi ovacionado durante um evento em Brasília a favor do impedimento de Dilma. Naquele dia, o então deputado federal declarou que: “Estamos lutando pelo que é nosso. O Brasil é nosso. Nós vamos tirar essa facção do poder”.9 Em junho do mesmo ano, ao ser recebido por aproximadamente 350 apoiadores no aeroporto de Campo Grande, Bolsonaro declarou que “A população precisa extirpar o PT da política. Essa facção criminosa que ainda não deixou o poder”. 10
Estava traçado, com efeito, um discurso populista que dividiu o Brasil em dois polos antagônicos: o povo e os inimigos do povo,11 mais precisamente antipetismo e petismo, ou ainda bolsonaristas e “comunistas”. O povo, claramente, constituía-se pela direita, pelos antipetistas, pela parcela da população que rejeitava o PT, ou que não queria mais o retorno do partido ao comando do país. Por sua vez, os inimigos do povo eram justamente os petistas, vistos como uma quadrilha, uma organização criminosa que havia saqueado o país nos últimos 14 anos e aparelhado o Estado, sendo responsável por uma das mais recessões econômicas da história nacional. Lembrando que a definição de quem é aliado ou inimigo se dá no âmbito dos próprios campos discursivos. Assim, por exemplo, para os petistas, o inimigo do povo era o bolsonarismo.
Na verdade, sob o olhar do discurso bolsonarista, não apenas o PT passou a ser visto como inimigo do povo, mas a própria esquerda brasileira como um todo; todos os argumentos contrários a Bolsonaro passaram a ser vistos por seus apoiadores como “esquerdistas”, “esquerdopatas”, “comunistas”, etc. É importante lembrar, nesse sentido, que a construção das identidades é um processo relacional e negativo, através do qual a constituição da identidade do eu, envolve, necessariamente, a negação da identidade do outro, de maneira que a este último é atribuída toda sorte de características negativas e pejorativas (Woodward, 2000). Com efeito, o discurso bolsonarista associou o PT e a esquerda à ladroagem, à corrupção, à imoralidade, à destruição da família, ao aumento da violência, ao aparelhamento do Estado, ao aumento do tráfico de drogas. Essa visão está claramente delineada no plano de governo apresentado por Bolsonaro nas eleições de 2018:
Nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira (p. 8).
Após 30 anos em que a esquerda corrompeu a democracia e estagnou a economia, faremos uma aliança da ordem com o progresso: um governo Liberal Democrata (p. 10).
Aliás, o avanço das drogas e da esquerda são prevalentes nas regiões mais violentas do mundo [...]. Houve até “bolsa crack” em cidades administradas pela esquerda, como por exemplo em São Paulo (p. 26).
Enquanto a esquerda está preocupada com as mortes associadas a ações policiais, segundo a Ordem dos Policiais do Brasil, foram mortos 493 policiais em 2016!
Esse discurso, claramente baseado numa diferença nós/eles, povo/inimigos do povo, gerou uma dinâmica ideológica que transformou o sentimento de indignação e revolta popular antipetista em uma onda pró-bolsonarista. Por sua vez, o petismo e a esquerda, de forma geral, tornaram-se um polo antagônico antibolsonarista.
No discurso bolsonarista, aqueles que criticam o governo militar de 1964 e a atuação da força policial, que são contra a redução da maioridade penal e a revogação do estatuto do desarmamento, que defendem a descriminalização do consumo de drogas e da prática do aborto, assim como as feministas, os quilombolas, os indígenas, os integrantes e simpatizantes de movimentos como MST e LGBTQIA+, enfim, são inimigos do povo brasileiro, devendo ser duramente combatidos. Sob o olhar do eleitorado de Bolsonaro, o mesmo surgiu como um grande líder popular que levaria a cabo a tarefa de “libertar” a nação brasileira de seus inimigos (a esquerda).
Com declarações que denunciavam a corrupção e a ineficiência do PT e da esquerda, que defendiam o regime militar, a posse e o porte de armas, a redução da maioridade penal para 16 anos, a atuação mais enérgica das forças policiais, a valorização do modelo de família nuclear, os valores cristãos, declarações essas proferidas em um contexto nacional marcado por uma crise econômica histórica e pelas inúmeras denúncias de corrupção envolvendo as instituições políticas brasileiras, Bolsonaro conseguiu articular hegemonicamente ao redor de si um conjunto de demandas coletivas, emergindo como o grande líder populista da direita. O bolsonarismo, com efeito, se caracteriza, claramente, como um modelo de governo populista, baseado na articulação de demandas equivalenciais. Sua força política emana, justamente, do seu grande poder equivalencial de representação, que outrora fora o grande trunfo do PT e do lulismo.
Nesse sentido, se Kalil (2018) estiver correta, 16 são os perfis12 articulados em prol da hegemonização e representação universal em torno da figura de Bolsonaro. Com efeito, tais perfis foram nomeados e definidos pela autora da seguinte forma: 1) “As pessoas de bem” que reivindicam que as instituições sejam fortalecidas para o fim da impunidade; 2) “Masculinidade Civil”, perfil que defende o uso de armas para os civis fazerem justiça com as próprias mãos; 3) “Nerds, gamers, hackers e haters”, os quais defendem a imagem de um mito; 4) “Militares e ex-militares”, que enxergam a guerra às drogas como solução para a segurança pública; 5) “Femininas e ‘bolsogatas’”constituído por mulheres “empoderadas” para além do “mimimi13”; 6) “Mães de direita”, grupo formado por aquelas que lutam por uma escola sem “ideologia de gênero”; 7) “Homossexuais conservadores” os quais se caracterizam pela ideia de que “homem é homem”, não importando se homo ou heterossexual; 8) “Etnias de direita/Minorias de direita”, grupo que expõe ser perseguido por se posicionarem a favor de Bolsonaro e por isso defendem mais autonomia política para si; 9) “Estudantes pela liberdade”, cujo voto caracteriza-se pela rebeldia contra a “doutrinação marxista”; 10) “Periféricos de direita”, indivíduos caracterizados pela pobreza e que desejam o “Estado mínimo”; 11) “Meritocratas”, marcados pelo antipetismo dos que se consideram liberais e que “venceram pelo próprio mérito”; 12) “Influenciadores digitais” que engloba liberais e conservadores que produzem conteúdo nas redes sociais com o objetivo de “salvar o Brasil de se tornar uma “Venezuela”; 13) “Líderes religiosos”, os quais têm na defesa da família contra o “kit gay” e outros pecados sua principal bandeira; 14) “Fiéis religiosos” considerados os cristãos que defendem os valores da “família tradicional”; 15) “Monarquistas”, representado pelos indivíduos que desejam o retorno a um “passado glorioso”; e 16) “Isentos”, aqueles que creem que política não se discute, mas acreditam, ao mesmo tempo, de que uma mudança faz-se necessária (Kalil, 2018).
Apesar da diversidade e diferença entre os perfis que formam tal cadeia equivalencial, o que importava nas eleições de 2018 era derrotar o inimigo identificado como petismo. Por essa razão, mesmo que Bolsonaro tenha proferido falas homofóbicas, racistas e machistas durante toda sua carreira política, não foi raro ver homossexuais, negros e mulheres votando no candidato da extrema direita. Isto ocorre, pois o processo de identificação do “povo” com a retórica do antipetismo transcendeu toda e qualquer diferença entre seus discursos, formando uma extensa cadeia de equivalência em torno de Bolsonaro, cuja missão seria a de “destruir” e “varrer” o petismo e o comunismo no Brasil. Nesse sentido, o sentimento do antipetismo é responsável por conjugar todos esses grupos, mesmo que apresentem certas divergências com o então presidente. Desde que ele cumpra o seu papel de “acabar” com o inimigo e com tudo que ele supõe representar (corrupção, ideologia de gênero, violência, caos na economia, ditadura comunista, doutrinação marxista etc.) essas diferenças acabam ficando em segundo plano.
Considerações obre o bolsonarismo a partir do conceito de populismo de chantal mouffe
Partindo da concepção de que estamos assistindo à crise da constituição hegemônica neoliberal, Mouffe (2018) afirma que este é o momento urgente para fazer emergir determinada ordem mais democrática, sobretudo a partir do que a pensadora belga denomina de “momento populista”14 Entretanto, para ela, antes disto, faz-se necessário compreender a natureza das diversas transformações advindas dos últimos trinta anos na atual política democrática. Com efeito, Mouffe (2018) argumenta que muitos partidos15 socialistas e social-democratas encontram-se completamente sem direção, pois têm se agarrado na equivocada perspectiva liberal de caráter pós-político e pós-democrático, a qual advoga a ideia de que a política é um espaço de consensos, sem luta adversarial, isto é, sem disputas agônicas e antagônicas (Mouffe, 2015; 2018). Ademais, Mouffe (2018) ressalta a incapacidade da esquerda, seja a de viés marxista ou a social-democrata, de se dar conta de que as dinâmicas sociais que vinham ocorrendo nessas últimas décadas, sobretudo a partir do maio 1968, através dos movimentos contra culturais, não podiam mais ser amplamente compreendidas unicamente nos termos das lutas de classe.
Segundo Mouffe (2018), muitas demandas e reestruturações no âmbito do social foram emergindo nas últimas décadas, como a segunda onda do feminismo, os movimentos LGBTQIA+ e antirracistas, além de toda problemática que envolve a questão ambiental. Com isto, afirma ela, o clima político global muda de figura e direção e foi neste momento que os partidos de esquerda tradicionais não conseguiram reconhecer e captar o caráter fundamentalmente político desta dinâmica, haja vista que suas preocupações estavam todas voltadas para o que a autora denomina de “essencialismo” de classe. Nesse sentido, a arena contemporânea do conflito social foi ampliada em vez de ficar concentrada num “sujeito privilegiado”16, cujo fundamento último seria a revolução socialista/comunista encarnada na classe trabalhadora (Mouffe, 2018). Sobre isto, Mouffe (2018: 15) explica que “sempre existirão antagonismos, lutas e uma opacidade parcial do social. Portanto, deve-se abandonar o mito do comunismo como uma sociedade transparente e reconciliada que colocaria o fim da política”.
Os pressupostos mouffeanos preconizam a ideia de que, a partir das amplas transformações no âmbito da política já expostos aqui, os partidos de esquerda, principalmente aqueles que têm representado a social democracia na Europa, descartaram sua identidade de esquerda em prol da “modernização”, reformulando-se e apresentando-se como partidos de centro-esquerda (Mouffe, 2018). Tal situação pós-politica, segundo Mouffe (2018), produziu um processo de descrédito no que concerne às instituições democráticas, resultando, segundo a autora, nos elevados níveis de abstinência em vários pleitos eleitorais nos países democráticos. Além disto, Mouffe (2018: 17) adverte “sobre o crescente êxito dos partidos populistas de direita que pretendiam oferecer uma alternativa que devolvesse ao povo a voz que lhe foi confiscada pelas elites do establishment”. Conforme ela critica, as democracias na Europa Ocidental estão em meio a um processo de decadência, ao passo que o populismo de direita, frente a este declínio, tem conseguido dominar importantes espaços políticos. Decadência gerada, sobretudo, devido ao colapso das políticas de austeridade na Europa, afetando a condição de vida de vários setores da população, culminando, portanto, na crise do consenso pós-político ou pós-democrático dos partidos de esquerda e centro-esquerda.
Argumenta-se que foi essa, grosso modo, respeitadas as suas peculiaridades, a trama que preparou, no Brasil, o terreno à emergência de uma nova ordem social nas últimas eleições presidenciais, fortalecendo o populismo de direita encarnado na figura de Jair Bolsonaro. Com isso, infere-se que tanto o PT, como a esquerda brasileira em geral não souberam diagnosticar o que estava se passando no cenário político do país, especialmente desde as Manifestações de Junho de 2013. Diante desta última, representantes da esquerda parecem ter ficado catatônicos e cristalizados em meio à crise do governo petista, concomitante ao fortalecimento e ascensão dos grupos de direita e extrema direita. Mesmo vencendo as eleições presidenciais de 2014, isto não foi suficiente para atenuar o declínio da hegemonia petista, o que culminou, por sua vez, no impeachment de Dilma Rousseff dois anos depois.
Não entendendo ou não acreditando no caráter eminentemente agônico e antagônico da política, o PT e boa parte da esquerda brasileira, de certa forma, menosprezaram a capacidade do seu “inimigo” de aglutinar e universalizar as demandas populares em torno de um discurso reacionário e conservador dos grupos de extrema direita. A eleição de Donald Trump em 2015, nos EUA, não serviu de exemplo à esquerda brasileira, tampouco ao PT, partido que apostou todas suas fichas no processo eleitoral de 2018 e acabou derrotado, não só a nível nacional, como também nos estados brasileiros. Não era raro, nesse sentido, encontrar intelectuais e outros membros que defendiam os ideais petistas afirmando que o impeachment não aconteceria, que Lula não seria preso, que ele ganharia as eleições no primeiro turno, que Bolsonaro jamais seria eleito, entre outras ilusões que hoje se mostraram completamente desvinculadas da realidade. Reforçando tal argumento, Mouffe (2018) salienta que:
Os partidos socialdemocratas, que em muitas nações têm desempenhado um rol importante na implementação das políticas neoliberais, são incapazes de compreender a natureza do momento populista e afrontar o desafio que representa. Prisioneiros de seus dogmas pós-políticos e sem admitir seus erros, não logram reconhecer que muitas das demandas articuladas por partidos populistas de direita são demandas democráticas as quais se deve dar uma resposta progressista (Mouffe 2018: 36).
Ainda em tempo, Mouffe (2018) considera que a prática de rotular os partidos de direita como “fascistas” ou “neofascistas” e conferir sua atração das demandas populares como falta de educação, formação e consciência crítica se faz apropriada às forças de centro-esquerda. É uma maneira mais simples, diz a autora, para desqualificar o populismo de direita sem levar em consideração sua própria responsabilidade no que tange à emergência desse discurso de extrema direita. Quando se constitui um limite ou uma fronteira “moral” que exclui os “extremistas” do espaço democrático, os considerados “bons democratas” acreditam que vão conter o surgimento das paixões “irracionais do inimigo” (Mouffe, 2018). Tal estratégia de demonização do “inimigo”, diz Mouffe, é confortável do ponto de vista moral, todavia é completamente inofensiva a nível político. Inclusive, no Brasil, quanto mais atacavam a figura de Bolsonaro lhe chamando de “fascista”, “misógino”, “homofóbico”, “racista” e “machista”, mais ele parecia crescer diante da opinião pública, pois não importava para o “povo” o que pensava e dizia Bolsonaro, mas sim, a solução que ele encarnava das principais demandas populares, como segurança pública, o combate à corrupção e a derrocada de uma suposta herança “comunista”.
É interessante notar que esses processos políticos parecem ser cíclicos e se repetem – cada qual com suas singularidades e grandezas distintas – décadas depois como se fossem fenômenos completamente novos, quando na verdade são parte de uma mesma estrutura estratégica, de um mesmo roteiro, porém com personagens, locais e épocas diferentes. Justamente este é o ponto o qual se faz a crítica ao PT e à esquerda brasileira: podendo ter a história dos fatos como ferramenta para não cair nas mesmas armadilhas de outrora, preferiram manter e seguir com a trama que fez, por exemplo, Margaret Thatcher a tornar-se primeira ministra do Reino Unido, em 1979. Sobre isto, Mouffe (2018) afirma que neste período da década de 1970, o Partido Laborista, o qual representava a esquerda britânica teve sua parcela de contribuição para ascensão do populismo de Thatcher. O partido, diz Mouffe (2018), ficou prisioneiro na sua própria visão economicista e essencialista, sendo incapaz de captar e compreender a urgência de uma política hegemônica de esquerda, fechando-se, assim, em uma defesa equivocada de seus ideais tradicionais. Ademais, “não logrou resistir ao ataque das forças que se opuseram ao modelo keynesiano, o qual pavimentou o caminho para a vitória ideológica e cultural do projeto neoliberal” (Mouffe, 2018: 47).
Além disso, Mouffe (2018) salienta que, diferentemente do Partido Laborista, Thatcher tinha plena consciência da característica partidária – no sentido de tomar partido, tomar posição – e conflitiva da política. Suas estratégias, diz a autora, eram indubitavelmente populistas. Foi por este motivo que Thatcher conseguiu construir uma fronteira antagônica, na qual, de um lado estavam os grupos do considerado establishment (burocratas do Estado, sindicatos e os beneficiários das ajudas estatais) e, do outro, a “gente” das indústrias, vítimas, segundo a lógica populista de Thatcher, das inúmeras forças burocráticas estatais e seus aliados. Portanto, Thatcher conseguiu “desarticular os elementos-chave da hegemonia social democrata e pôde estabelecer uma nova ordem hegemônica baseada no consentimento popular (Mouffe, 2018: 48).
Quando Mouffe (2018) usa Stuart Hall para abordar o “thatcherismo”, caracterizando-o como um populismo autoritário, parece que nada se difere do que estamos assistindo no Brasil atualmente. Hall apud Mouffe (2018) define o populismo de Thatcher como um governo que aglutina os principais temas do conservadorismo, tais como nação, família, dever, autoridade, tradicionalismo, interesse próprio, individualismo competitivo e antiestatismo. Tudo isto atrelado, segundo ele, ao modelo neoliberal de economia. Basta atentar à agenda econômica do governo Bolsonaro, representada pelo ministro da economia, Paulo Guedes. Privatizações em massa, reforma da previdência, defesa da reforma trabalhista, incentivo ao empreendedorismo, “criminalização” dos sindicatos e universidades públicas, escolas cívicos-militares, defesa de um currículo extremamente conservador nas escolas, defesa dos valores da “família tradicional brasileira”, ênfase na figura divina, combate da violência crônica muito mais voltado ao confronto armado do que à criação de políticas públicas para “cortar o mal pela raiz” são algumas das características que colocam o governo brasileiro no hall dos populismos autoritários de direita do mundo contemporâneo nos últimos tempos.
Frente a isto, é necessário ressaltar que não há, aqui, uma comparação tal e igual do thatcherismo ao bolsonarismo, uma vez que o primeiro tem uma amplitude de transformações globais que, evidentemente, o governo de Bolsonaro não possui. O exemplo que se faz uso serve para ilustrar, com base na argumentação de Mouffe, como determinado discurso de direita, mesmo sendo radical e conservador, pode representar a categoria de “povo”, tornando-se hegemônico e, portanto, populista. Foram os casos de Donald Trump nos EUA e de Jair Bolsonaro no Brasil. Em resumo, argumenta-se que tanto Thatcher, quanto Trump e Bolsonaro, cada qual com suas singularidades e magnitude, representam discursos de direita que lograram aglutinar e universalizar as demandas do “povo” a partir da visão de que a política só se faz pelo conflito e pela produção e desejo de derrotar o inimigo criado através de relações eminentemente antagônicas. Característica esta que a esquerda brasileira parece não ter atentado nos últimos anos.
Considerações finais
Dada a extrema amplitude e velocidade das transformações no tecido social, resultado da natureza complexa que permeia o mundo contemporâneo, não é tarefa fácil projetar o cenário dos próximos capítulos da trama política brasileira. Entretanto, os argumentos expostos neste artigo podem servir como ferramenta teórica e epistemológica para que seja possível compreender como que personagens populistas de direita com retóricas, muitas vezes racistas, xenófobas, homofóbicas e misóginas podem lograr tanto apoio e apelação num pleito eleitoral a ponto de se manterem no poder durante anos.
Nesse sentido, o conceito de populismo, tanto o de Laclau como o de Mouffe, definido com bases fincadas, especialmente na psicanálise lacaniana e com raízes epistemológicas pós-fundacionalistas e pós-estruturalistas, abre essa possibilidade de buscar, além do entendimento sobre a ascensão dos partidos populistas de direita em âmbito global, qual seria o papel dos partidos de esquerda diante desse cenário. Ademais, pode colaborar demonstrando como que estratégias adotadas equivocadamente pela esquerda no Brasil e alhures têm impactado nessa trama discursiva.
Por fim, frisa-se que a esquerda brasileira terá como grande desafio nos próximos anos compreender a dinâmica de um cenário político global, no qual o populismo de direita adquire novos terrenos, para então repensar/reinventar sua atuação. Parafraseando a obra-prima de Laclau e Mouffe (Hegemony and Socialist Strategy), acredita-se que a esquerda brasileira precisa arquitetar estratégias para construir uma hegemonia socialista, que conduza a uma democracia radical. Se isso não ocorrer, muito provavelmente, a direita permanecerá no comando do país pelas próximas décadas. Em outras palavras, ou a esquerda brasileira se atenta para os novos e dinâmicos rumos que a política vem tomando –as últimas “convulsões” sociais no Chile, Peru, Venezuela, Equador, China, entre outros países, mostram a contingência no cotidiano do campo político–, mudando suas estratégias de “luta” ou sucumbirá diante do avanço dos setores mais conservadores e reacionários da extrema-direita.
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1 Informação disponível em: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/09/mpf-denuncia-lula-marisa-e-mais-seis-na-operacao-lava-jato.html. Acesso em: 4 ago. 2021
2 Informações disponíveis em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/12/1724604-a-tragedia-da-economia-brasileira-em-2015-em-7-graficos.shtml. Acesso em: 26 dez. 2020.
3 Informação disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/reveja/o-artigo-em-veja-e-a-prisao-de-bolsonaro-nos-anos-1980/. Acesso em: 24 out. 2021.
4 A pesquisa foi realizada entre os dias 17 e 18 de outubro 2018. No total, foram entrevistados 9.137 eleitores com 16 anos ou mais, em 341 munícipios do país. A cada um deles foi feita a seguinte pergunta: “por quais motivos você pretende votar no candidato Jair Bolsonaro/Fernando Haddad?” As respostas espontâneas foram agrupadas em temas comuns.
5 É importante destacar que essa rejeição ao PT se direciona à instituição, isto é, ao partido político, não significando, necessariamente, uma rejeição ao candidato Fernando Haddad. Apenas ٢٪ das razões de voto em Bolsonaro estão relacionadas diretamente a uma rejeição a Haddad. Por sua vez, dentre os eleitores de Haddad, a principal razão de voto (٢٠٪) é a rejeição direta à figura Jair Bolsonaro, e não necessariamente à instituição PSL.
6 “Uma desinformação que circulou nas eleições foi a existência de um “kit gay” a ser distribuído nas escolas. A estória mobilizou alguns temores: o debate sobre gênero nas escolas (reduzido à “ideologia de gênero”) e a educação sexual. Em consequência, a base bolsonarista reverberou apoio ao Movimento Escola Sem Partido, que propõe combater a chamada doutrinação ideológica de esquerda nas escolas, que incluiria a questão de gênero, e à aprovação da homeschooling, para as famílias educarem seus filhos em casa. Além disso, a oposição às pautas do movimento feminista, LGBTQIA+ e negro atacando políticas públicas relacionadas, como a Lei Maria da Penha, a tipificação do feminicídio, a regulamentação da homofobia e política de cotas” (Nascimento; Braga, 2021, p. 110).
7 Todas as citações de textos em língua estrangeira foram traduzidas livremente.
8 Informações disponíveis em: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-critica-ditadura-do-pt-e-e-ovacionado/. Acesso em: 1 nov. 2021.
9 Informações disponíveis em: https://www.revistaforum.com.br/bolsonaro-e-ovacionado-em-ato-pro-golpe-no-df/. Acesso em: 5 nov. 2021.
10 Informações disponíveis em: https://www.campograndenews.com.br/politica/bolsonaro-chega-e-nos-ombros-do-filho-critica-o-pt-e-a-corrupcao. Acesso em: 5 nov. 2021.
11 É importante destacar, que o próprio PT também se hegemonizou baseado numa lógica populista que demarcou uma fronteira antagônica entre o povo versus os inimigos do povo. Como argumenta Cardoso, o PT se ergue enquanto partido em torno do eixo esquerda (povo) - direita (inimigos do povo), pintando o PSDB como o grande representante da elite conservadora.
12 Entendemos esses perfis como tipos ideais weberianos.
13 Expressão utilizada para estereotipar o que chamam de “vitimismo” das minorias.
14 Para uma aproximação mais detalhada deste conceito, ver “O momento populista”, de Chantal Mouffe (2019), disponível em: http://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/27199/18350 Acesso em: 12 de out. 2021.
15 Mouffe faz referência aos partidos Europeus, mas acreditamos que sua abordagem retrata significamente o clima político atual na América Latina, sobretudo no Brasil.
16 “Diferentemente do que afirmam certas interpretações errôneas de nosso argumento, isto não significa que temos privilegiado as demandas dos novos movimentos em detrimento das da classe trabalhadora” (Mouffe, 2018: 15).