Volumen 33 Nº 2 (abril/junio) 2024, pp. 126-137
ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.11208319
Violência doméstica e familiar contra mulheres trans: insuficiência legal ou má interpretação? Uma análise sob a perspectiva da Teoria Feminista
Gabriela Maria Pinho Lins Vergolino
Resumo
A Lei nº 11.340/2006 surgiu como instrumento de prevenção e repressão de violências praticadas contra mulheres em razão de seu gênero. No entanto, existem posicionamentos judiciais e debates legislativos sobre o objetivo do termo inserido na legislação, sendo questionado sobre quais mulheres a lei se refere. Por essa razão, importa uma análise dos conceitos de sexo e gênero, a partir da teoria feminista, além da breve apresentação de Projeto de Lei que pretende definir o conceito de gênero, bem como da decisão recente do Superior Tribunal de Justiça, que, por sua vez, foi favorável à aplicação da Lei às mulheres trans. Sendo assim, este trabalho pretende, a partir de revisão bibliográfica, identificar referenciais teóricos para classificação de conceitos e categorias que expliquem a (in)adequação da Lei aos casos de violências contra mulheres trans. Será má interpretação ou de fato a Lei é insuficiente para proteção dessas mulheres?
Palavras-chave: violência doméstica; Lei Maria da Penha; mulheres trans; decisões judiciais; gênero; teoria feminista.
Domestic and family violence against trans women: legal insufficiency or misinterpretation? An analysis from the perspective of Feminist Theory
Abstract
Law nº 11.340/2006 emerged as an instrument for the prevention and repression of violence against women based on their gender. However, there are judicial positions and legislative debates about the purpose of the term inserted in the legislation, being questioned about which women the law refers to. For this reason, it is important to analyze the concepts of sex and gender, based on feminist theory, in addition to the brief presentation of a Bill that intends to define the gender’s concept, as well as the recent decision of the Superior Court of Justice, which, in turn, was in favor of applying the Law to trans women. Therefore, this work intends, based on a bibliographic review, to identify theoretical references for classifying concepts and categories that explain the (in)adequacy of the Law in cases of violence against trans women. Is it a misinterpretation or is the Law actually insufficient to protect these women?
Keywords: Domestic violence; Maria da Penha Law; trans women; court decisions; gender; feminist theory
Universidade Federal da Bahia. Salvador, Brasil
Orcid: 0000-0003-1413-3309
E-mail: gabrielavergolino@ufba.br
Recibido: 04/10/2024 Aceptado: 21/02/2024
Introdução
A Lei nº 11.340/2006 (Brasil, 2006) surgiu como instrumento de proteção, criando mecanismos tanto de prevenção quanto de punição de violências praticadas contra mulheres, classificadas como violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral. A legislação foi promulgada a partir dos fundamentos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, após o caso da Sra. Maria da Penha Maia Fernandes alcançar a seara internacional.
Este caso fortaleceu o conceito de violência doméstica contra as mulheres como uma violação de Direitos Humanos no Brasil. A Lei Maria da Penha, como ficou conhecida, ganhou o reconhecimento da Organização das Nações Unidas, através do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, como a 3ª melhor legislação contra violência doméstica do mundo, perdendo apenas para a Espanha e o Chile. No entanto, embora a criação desta Lei seja reconhecida como um grande avanço, no Brasil a violência contra mulheres ainda é acentuada, segundo dados do Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem, 2023), a média de feminicídios consumados por dia, em 2023, foi de 4,66, totalizando 1.706 casos.
Entre as causas mais apontadas como origem dessas violências está a divisão organizacional das sociedades entre sexos atribuindo privilégios para os homens e subordinação para as mulheres. Inclusive, após o desenvolvimento da globalização, passou-se a falar em um patriarcado modernizado internacionalmente hegemônico (Connel, 2016). Esta construção social acarreta fortes impactos nas relações domésticas, tendo em vista que a violência passa a ser instrumento de controle para garantia da perpetuação dos privilégios do homem (Hooks, 2018).
Conforme bem sintetizou Pimentel e Araújo,
A violência contra as mulheres, no Brasil, é uma das expressões da violência de gênero firmada nas bases históricas do país, verdadeiro produto das relações de poder típicas das sociedades patriarcais, nas quais gênero, raça e classe figuram como opressões indissociáveis. (2020:364)
Importa ressaltar, portanto, que ela se origina da vulnerabilidade refletida nas relações de poder entre gêneros e não da característica meramente biológica. No entanto, embora elaborada especificamente para que seja aplicada sempre que a vítima for do gênero feminino, a referida Lei não alcança todas as mulheres.
Sobre os limites da análise discursiva do gênero, explicita Butler “Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal (2021:30-31):”. Então o conceito de gênero estaria no que ela denomina de domínio imaginável do gênero, ou seja, o conceito seria traduzido a partir da coerção linguística construída culturalmente para estabelecer as possibilidades de desenvolvimento da categoria gênero.
A partir destes limites do discurso, a sociedade assumiu a noção de que as vítimas de violência doméstica e familiar seriam aquelas relacionadas ao sexo biológico feminino, como se o gênero feminino fosse diretamente ligado ao ser fêmea (Butler, 2021), pautada em uma visão binária, heterossexual, cissexista, colonial, influenciada inclusive pelas religiões do Ocidente.
Isto ocorre tanto no que tange a construção legislativa quando à aplicação da lei, a fim de transformá-las em políticas públicas que alcancem as diversas mulheres existentes, considerando não apenas o sexo biológico mas as intersecções de marcadores como raça, sexualidade, identidade, classe e etnia.
Assim, para analisar a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans é importante o aprofundamento da análise dos conceitos de gênero e sexo, adequando ao termo “mulheres” como é utilizado na legislação. Se a Lei utiliza o termo violência de gênero, isto já não seria suficiente para entender que as mulheres trans fazem parte deste grupo hipossuficiente? Por que então tantas decisões (interpretações) judiciais e projetos de Lei excluem essas mulheres de sua proteção?
Em razão do debate jurídico e decisões contraditórias neste sentido, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, interpretando a Lei ao objeto de debate e a partir do entendimento do Ministro Rogerio Schietti, relator do recurso, que afirmou que “Este debate tem por objetivo dizer que mulher trans mulher é” (Brasil, 2023:26), decidiu que se deve aplicar a Lei Maria da Penha a violências praticadas contra as mulheres trans.
Com base nos questionamentos apresentados, este trabalho pretende, a partir de revisão bibliográfica, identificar referenciais teóricos para classificação de conceitos e categorias que expliquem a (in)adequação da Lei aos casos de violências contra mulheres trans. Assim, será possível entender se há de fato uma insuficiência legal que precisa de reparação/complementação ou se podemos seguir em frente e superar o debate a partir da interpretação da lei nos moldes já existentes como tem acontecido em decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça.
Mulheres, Sexo e Gênero
Haverá ‘um’ gênero que as pessoas possuem, conforme se diz, ou é o gênero um atributo essencial do que se diz que a pessoa é, como implica a pergunta ‘Qual é o seu gênero?’ (Butler, 2021: 28)
O artigo 5º da Lei Maria da Penha expressa que:
Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. (Brasil, 2006:1)
Ocorre que, desde sua publicação, os tribunais brasileiros passaram a aplicá-la aos casos concretos de forma divergente, visto que a partir da interpretação subjetiva do julgador no que diz respeito aos conceitos de mulheres e gênero, o Estado passou a excluir algumas mulheres de sua proteção, pelo fato de não se adequarem, sob seu ponto de vista particular, ao termo gênero feminino. Assim, faz-se necessário abordar os termos envolvidos para analisar, de fato, quem são essas mulheres que a lei pretende proteger.
Muito discutiu-se - e discute-se - na teoria feminista sobre as relações entre sexo, gênero, desejo e identidade, para Butler (2021), as identidades são significadas e ressignificadas a partir de categorias limitadas pelas regras às quais o sujeito está posicionado em um determinado contexto histórico, cultural e social. Assim, há limitação para a performatividade de identidades inteligíveis a partir da inscrição em uma linguagem específica e restritiva.
Nesse sentido, ela sugere que através da repetição das práticas de significação pode-se subverter a identidade, a isto ela chama de performance dissonante e desnaturalizada. Assim, ela se contrapõe às estruturas fundacionais e limitadoras e propõe a libertação das identidades de maneira que, vistas como ação, construção e repetição, elas possam ser fluidas e possíveis, não havendo, necessariamente, uma similaridade inequívoca entre um determinado sexo e o gênero, embora seus conceitos sejam, ainda, conectados.
Ann Oakley afirmou em seu artigo Sexo, Gênero e Sociedade que a identidade de gênero é uma variável cultural independente (Oakley, 2016), mesmo que as pessoas classifiquem certas condutas como sendo relativas a mulheres ou a homens, não necessariamente estas identidades vão coincidir. Além disso, vale ressaltar que segundo sua análise, a identidade de gênero, ou seja, a noção que a pessoa tem de si mesma, é que pode moldar a biologia, inclusive influenciando o aspecto do desejo sexual e não o contrário.
Embora o trabalho de Oakley esteja posicionado em seu tempo histórico1, que não se adequam integralmente a epistemologia crítica atual, aqui enfatiza-se como há algum tempo os debates que versam sobre as relações entre sexo e gênero já o faziam para buscar as suas diferenças e, para algumas pesquisadoras, sua dissociação, demonstrando que não se pode confundir sexo com gênero ou mesmo utilizar as expressões como se fossem categorias idênticas, tendo em vista suas possíveis variantes na prática.
Gayle Rubin, por sua vez, afirma que o gênero é “uma divisão dos sexos imposta socialmente” (2017:27) e que o sexo definiria quem são os homens e as mulheres. No entanto, esta construção seria feita socialmente a fim de garantir a perpetuação do sistema, isto quer dizer que também interfere na sexualidade dos indivíduos. Além disso, autora faz a diferença entre sexo anatômico e o sexo social (gênero), entretanto afirma que a sociedade é estabelecida em um sistema sexo-gênero que seriam, embora diferentes, interligados.
Sob a perspectiva decolonial e do feminismo negro, há uma crítica imposta às teóricas feministas brancas que, baseadas em ideais nascidos do imperialismo, do colonialismo e da cultura do Ocidente, definiram o conceito de mulher universal, partindo do pressuposto que todas as mulheres são vítimas da mesma opressão e que as construções teóricas sobre sexo e gênero são peculiares ao seu próprio sistema.
Fundadas nesta crítica, elas debatem a categoria de gênero a partir de uma construção social própria, praticada em sociedades que possuíam um sistema organizacional diferenciado, antes de a colonização impactar e influenciar em suas dinâmicas sociais.
Oyewùmí (2021) e Rubin (2017a) concordam em dois pontos interessantes para a análise. Primeiro sobre o essencialismo de gênero no mundo ocidental, a última defende o construtivismo, a liberação da sexualidade, e a primeira afirma que na sociedade Iorubá os gêneros podem ser transformados a partir do contexto da socialização, não havendo o determinismo biológico ou naturalizado e factual do gênero a partir de fatores biológicos:
Na sociedade Iorubá, antes da instalação forçada das categorias ocidentais, as posições sociais das pessoas mudavam constantemente em relação a com quem estavam interagindo; consequentemente a identidade social era relacional e não essencializada. Em muitas sociedades européias, ao contrário, machos e fêmeas têm identidades de gênero decorrentes da elaboração de tipos anatômicos; portanto, homens e mulheres são essencializados. (Oyewùmí, 2021: 27)
Nota-se que ambas são contrárias aos conceitos compartimentalizados com base em essencialismos que algumas sociedades, especialmente ocidentais, formulam sobre sexo e gênero e que, dessa forma, não reconhecem que podem haver outras alternativas e realidade.
O segundo ponto é a afirmação de que, para o entendimento ocidental, tudo que for diferente do estabelecido como padrão é considerado degenerado (Oyewùmí, 2021) ou repulsivo (Rubin, 2017), sendo vítimas de exclusão diante das rígidas regras impostas para categorias inteligíveis (Butler, 2021).
Oyeronke Oyewùmí (2021) é assertiva quando afirma que no Ocidente trata-se gênero e sexo como sinônimos. Com efeito, conforme foi descrito nesta pesquisa, as autoras ocidentais envidaram esforços para analisar e teorizar a diferenciação entre gênero e sexo, inclusive posicionando o gênero para além do indicativo do sexo biológico, em que pese o reconhecimento de sua ligação-interconexão, a fim de reverter a ideia do senso comum de que seriam termos de idêntica aplicabilidade.
Entende-se que ela faz isso com o objetivo de destacar o seguinte:
“Ou seja, [na sociedade Iorubá] a “fiscalidade” da masculinidade ou feminilidade não possuía antecedentes sociais e, portanto, não constituía categorias sociais. A hierarquia social era determinada pelas relações sociais” (Oyewùmí, 2021:65).
Importante ressaltar que, na visão Iorubá sobre os papéis sociais, as hierarquias sociais não possuem qualquer ligação com o sexo ou gênero. Portanto, não seria possível aplicar a lógica ocidental à esta organização social preexistente à colonização, cujo impacto refletiu nas variadas dinâmicas sociais encontradas em cada povo, relacionadas a uma suposta diferenciação entre papéis sociais específicos de homens e mulheres, inserindo ideias como sexo e gênero que não se encaixam sequer na linguagem utilizada anteriormente por eles.
Ainda do ponto de vista da decolonialidade e da quebra dos paradigmas de sexo/gênero, Caterina Rea (2018) menciona os two spirits, indígenas canadenses/estadunidenses que se identificam no grupo LGBTQIA+, e desassociam sua visão espiritual e de identificação da corporificação da sexualidade, inclusive afirmando sua dissidência sexual como forma de contestar o modelo heteronormativo imposto pela colonização europeia.
Isto corrobora com as afirmações de Oyewùmí (2021) que também resgata a dinâmica social Iorubá para, contestando a colonização e a implementação forçada dos saberes europeus nos países colonizados, demonstrar que a divisão restrita e compartimentalizada sequer existia, uma vez que as pessoas desenvolviam um papel na sociedade a partir de suas relações e posições e não necessariamente por ser homem ou mulher, ratificando a ideia de que o gênero e o sexo são conceitos dissociados. Para a autora, eles são totalmente descontextualizados, já que o sexo biológico só interessa à perpetuação da espécie e nada mais.
Guacira Lopes Louro, em seu ensaio sobre sexualidade e teoria queer, afirma:
Precisamos estar atentos para o caráter específico (e também transitório) do sistema de crenças sobre o qual operamos; precisamos nos dar conta que os corpos vêm sendo “lidos” ou compreendidos de formas distintas em diferentes culturas, de que o modo como a distinção de masculino/feminino vem sendo entendida diverge e se modifica histórica e culturalmente. (2004:76)
Butler (2021:25) afirmou que: “Talvez, paradoxalmente, a ideia de representação só venha realmente a fazer sentido para o feminismo quando o sujeito mulheres não for presumido em parte alguma”. Estas análises traduzem a necessidade de pensar os conceitos de mulheres, sexo e gênero para além do universalizado e essencializado, com a consciência de que estão em constante construção/modificação.
Especialmente quando falamos sobre transexualidade, com base na linguagem construída como sustentáculo das relações de poder, incluímos as pessoas que performam uma identidade de gênero nomeada como feminina, identificando-se com os papéis sociais designados para o feminino, ainda fundado nesse conceito binário, embora tivessem sido designadas como do sexo masculino ao nascer.
Ou seja, para a sociedade, elas performam uma identidade dissociada do seu sexo, o que corrobora com a ideia da literatura apontada de que o gênero é construído a partir de regras sociais que estão inscritas por um discurso utilizado para perpetuação da divisão sexual de papéis sociais relativos a determinado gênero e, portanto, fazem parte das dinâmicas de hierarquia e poder, podendo articular-se entre si, como algumas teóricas ocidentais mencionam, como também podem estar completamente dissociados, como teóricas decoloniais demonstram. Vale destacar, por fim, que nenhuma das autoras apresentadas afirmam que sexo e gênero estariam na mesma categoria ou mesmo seriam sinônimos.
Mulheres trans e violência doméstica e familiar
O original já nasce “contaminado” pela cultura. Antes de nascer, o corpo já está inscrito em um campo discursivo. (Bento, 2008:550)
A partir do exposto no capítulo anterior e partindo do pressuposto de que há diferenciação entre o sexo biológico (anatômico) e o gênero através da performatividade de uma identidade específica, podemos refletir sobre a transexualidade e o reconhecimento de mulheres transgênero como vítimas de violência doméstica e familiar, em conformidade com o texto formulado na legislação brasileira (Brasil, 2006) que aponta como sujeito passivo da ação ou omissão uma pessoa do gênero inscrito em nossa sociedade como feminino.
Inicialmente, como causa para essas violências cita-se o machismo e o patriarcado, destacando a desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres e como isto é exteriorizado a partir das violências cometidas entre (ex) parceiros e familiares no âmbito doméstico.
Historicamente, as mulheres eram parte da propriedade dos homens devendo obediência e submissão. Os conflitos eram resolvidos no âmbito privado, isto quer dizer que o Estado pouco, ou nada, interferia nestas questões. A legislação evoluiu ao longo dos anos até culminar na Lei Maria da Penha (Brasil, 2006) e, posteriormente, na Lei do Feminicídio (Brasil, 2015), com vistas a reconhecer como de interesse público a defesa das violações do conjunto de direitos que passou a ser reconhecido como direitos humanos das mulheres.
Portanto, tem-se a igualdade formal constitucional e tem-se leis, mas se carece da aplicação adequada da legislação para que haja efetividade das políticas públicas. E para isso, é preciso haver a preocupação no que tange ao acolhimento das mulheres diversas que necessitam destas políticas, que necessitam destas leis.
Nesta diversidade de mulheres, as mulheres trans, a partir da mudança de sua posicionalidade no contexto social, participam como parte hipossuficiente nas relações de poder estruturadas na sociedade. Dessa forma, além da opressão em razão de uma identidade vista como dissidente, sofrem também a opressão de gênero, por serem reconhecidas como mulher.
Sendo assim, é inconteste a necessidade de políticas públicas e aplicação adequada da legislação para a efetiva proteção também dessas mulheres, no entanto, elas seguem tão invisibilizadas quanto perseguidas e, sem a proteção do Estado, ficam à mercê de sua própria sorte enquanto a sociedade tenta enquadrá-las nas normas naturalizadas e inteligíveis, nos padrões rígidos gerados pela heterossexualidade compulsória, através da prática de violências.
Berenice Bento (2008) nomeia essas práticas de heteroterrorismo, que começam na infância com os ensinamentos sobre o que seriam comportamentos aceitáveis e o que seriam sinais de alerta, passíveis de punições. Sobre as violências praticadas contra pessoas trans, explica:
Se as ações não conseguem corresponder às expectativas estruturadas a partir das suposições, abre-se uma possibilidade para desestabilizar as normas de gênero, que geralmente utilizam da violência física e/ou simbólica para manter essas práticas às margens do que é considerado humanamente normal. (Bento, 2008:43)
Remete-se o heteroterrorismo definido por Bento (2008) aos pânicos morais exemplificados por Rubin (2017), que se exteriorizam a partir da criminalização e exclusão de atos desviantes, ou seja, daqueles que não condizem a um significado estruturado por um discurso prévio considerado o padrão.
Esses conceitos seguem na esteira do pensamento de Butler (2021) no qual o desnaturalizado ou ininteligível é excluído, com base em um discurso que aprisiona e impede que haja possibilidades para além do binarismo, ao que ela propõe a subversão da identidade.
A análise dos dados a seguir permite-nos perceber mais concretamente a realidade dessas violências, de acordo com relatório da Antra2 (2023), pelo 14º ano seguido, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Em 2022, houve 142 violações de Direitos Humanos, além de 131 assassinatos registrados, dos quais foram identificados apenas 32 suspeitos. Além disso, a pesquisa aponta que “A maioria é negra, empobrecida e reivindica ou expressa publicamente o gênero feminino” (Antra, 2023:47), tendo em vista que os dados demonstram que das 131 vítimas de assassinatos localizadas e consideradas na pesquisa, 130 eram travestis/mulheres trans, conclui-se que 99% dos casos são relacionados à identidade de gênero feminina.
Ainda sobre os poucos dados existentes no país, o relatório do Sinan3 demonstra que travestis e mulheres trans compõem 80% do total de vítimas trans que procuram o sistema de saúde. Das mulheres, 54% são negras, e 49% das agressões acontecem na casa das vítimas.
Portanto, as pessoas que não se reconhecem no corpo-sexo que lhes foi imposto desde o nascimento, e não exteriorizam as condutas esperadas para este corpo, partindo do pressuposto de que o gênero está relacionado socialmente aos corpos, sofrem desde a infância com a necessidade de se enquadrar no que é aceito pela sociedade, sob pena de sofrer violências que começam, muitas vezes, no âmbito doméstico e familiar, a partir da não aceitação de sua identidade e, ao mesmo tempo, do seu reconhecimento como mulher.
Insuficiência Legal ou Má Interpretação?
Num certo sentido, a história política tem sido jogada no terreno do gênero. Trata-se de um terreno que parece fixo, mas cujo significado é contestado e está em fluxo. (Scott, 1995:78)
Gayle Rubin (2017) ao fundamentar sua teoria radical do sexo, critica o essencialismo sexual que aloca o sexo em uma situação de imutabilidade e de origem natural, afirmando que a sexualidade é algo que vai além do critério biológico, embora possa ter influência dele.
A autora demonstra como a opressão e injustiça sexual é institucionalizada e transmite a ideia de que tudo que difere dos padrões definidos pelos valores morais e religiosos construídos há séculos pelas sociedades ocidentais, estão na base da hierarquia sexual, sendo não só reprovável como, historicamente, criminalizado. Do ponto de vista do Judiciário, podemos identificar a construção social a embasar a interpretação legislativa neste sentido.
Uma vez que as mulheres transexuais fogem dos padrões moralmente aceitáveis por este grupo de pessoas, e por isso são perseguidas (Rubin, 2017), ou mesmo consideradas anormais (Oakley, 2016), a tendência do Judiciário em uma sociedade patriarcal, cissexual, heteronormativa, e baseada em valores cristão das religiões ocidentais, é não conferir valor nem garantir seus direitos.
Como Gayle Rubin afirma: “O Estado intervém sistematicamente no comportamento sexual, em um grau que não seria tolerado em outras áreas da vida social” (2017:82). Assim, entende-se que a resistência ao reconhecimento das mulheres trans como pessoas do gênero feminino e, portanto, pondo em dúvida seu direito ao acesso à legislação protetiva, é mais uma maneira de o Estado interferir e regulamentar a vida das pessoas.
Em virtude do desequilíbrio de poder, identificado pela tomada de decisões daqueles que ocupam os espaços políticos sem considerar a palavra das minorias, a consequência é, de maneira geral, a ausência de previsão legal para proteção destas pessoas excluídas do processo legislativo.
No que tange à Lei Maria da Penha, promulgada após pressão internacional e de movimentos feministas, os legisladores optaram - a escolha das palavras postas em uma Lei nunca é aleatória - pela inclusão dos termos mulheres e gênero. Ou seja, seria aplicada esta Lei em virtude de ação ou omissão perpetrada contra mulheres em razão do seu gênero.
Não se fala em sexo biológico, nem em necessidade de possuir uma anatomia específica. Como foi assinalado alhures, o gênero, embora baseado em ideais corporificados, não se restringe a determinação do sexo ou sexualidade das pessoas. Assim, seria uma interpretação razoável concluir que quaisquer pessoas cuja identidade de gênero é feminina, pode ser sujeita passiva em relação à esta Lei.
Mas não foi isso que aconteceu. Os Juízos de 1ª instância passaram a definir em decisões judiciais quem seria enquadrada na lei e quem não seria, e seguindo o entendimento posto por Rubin (2017), as mulheres trans são automaticamente excluídas do amparo do Estado por não se adequarem a norma padrão imposta. As decisões divergem a partir do entendimento particular dos julgadores, muitos dos quais confundem gênero e sexo e pautam suas decisões com base unicamente no sexo biológico da vítima.
Em 2016, após 10 anos da promulgação da Lei Maria da Penha, a Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (COPEVDI) dispôs expressamente sobre a aplicabilidade da lei às mulheres transexuais e/ou travestis, independentemente de cirurgia de transgenitalização ou alteração de nome ou sexo no documento civil. No entanto, como órgão do Ministério Público não vincula de forma obrigatória os Tribunais, o Judiciário continuou a expressar entendimentos divergentes quanto à matéria.
Nesses conflitos de interpretação surgiram até tentativas legislativas de reformular o conceito de gênero. O Projeto de Lei nº 2.578/2020, de autoria do deputado Filipe Barros (PL-PR) sugeriu que o gênero no Brasil fosse definido pela determinação do sexo biológico e das características sexuais primárias e cromossômicas do indivíduo.
A proposta do Deputado defendia que os conceitos de gênero e sexo fossem sinônimos, preocupado com o fato de que
[…] ideólogos ligados às tendências mais extremistas do feminismo mundial, estrategicamente, passaram a usar o termo com um significado inventado por eles mesmos. Segundo os defensores desse novo conceito, gênero seria apenas um papel social flexível e fluido que cada um representaria como e quando quisesse, independentemente do que a biologia determine como tendências masculinas e femininas. Os críticos dessa teoria - que é desprovida de embasamento científico sério e contradiz diretamente descobertas no campo das neurociências - a chamam de ideologia de gênero.4
O projeto ainda está em tramitação, na fase de análise pela Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR), e é uma tentativa de coibir aquilo que políticos brasileiros da extrema direita denominam de ideologia de gênero.
Mais adiante, em 2022, após 16 anos da promulgação da Lei, o Superior Tribunal de Justiça, através de sua 6ª Turma, é incitado a se posicionar no Recurso Especial nº 1977124 SP, afirmando o seguinte:
Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é. (Brasil, 2022:27)
A partir desta decisão, o Judiciário passa a ter uma referência advinda de um Tribunal Superior que, embora ainda não seja vinculante, influencia as decisões de piso e dos Tribunais Regionais, sendo um avanço na interpretação da lei para proteger as mulheres trans e travestis. Embora existam legisladores que se opõem à dissociação entre sexo e gênero, a fim de deturpar o sentido posto na Lei, temos avançado - lentamente - para a garantia de direitos.
Por fim, importante mencionar que a partir de Março de 2023, as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça, tornaram-se de aplicação obrigatória no âmbito do Poder Judiciário nacional.
O protocolo apresenta conceitos, entre outros, de sexo e gênero, definindo sexo como o fator biológico e o gênero como uma construção cultural e, ainda, definiu identidade de gênero como a identificação de um conjunto de características não necessariamente alinhadas ao sexo designado, o que representa mais um avanço a facilitar a aplicação da Lei Maria da Penha também às mulheres trans.
Entende-se que a referida Lei traz um conceito bem definido sobre quem são as vítimas de violência doméstica e familiar, ou seja, mulheres, sejam as que nasceram com o sexo biológico marcado como fêmea, seja aquelas que se identificam como tal e se reconhecem dessa forma.
Não há que se falar, portanto, em insuficiência legal, tendo em vista que a Lei já possui o aporte teórico necessário para que as mulheres trans sejam reconhecidas enquanto vítimas de violência em razão do gênero, o que falta é a hermenêutica adequada aplicada ao caso concreto.
Conclusão
O feminismo, historicamente, através de teoria e práxis, há muito se debruça sobre as questões de sexo e sexualidade, gênero e identidade, sendo estabelecidas diferenças entre os conceitos e até mesmo a própria negação dos mesmos da maneira como se apresentam, posto que sob algumas perspectivas ainda padece de rigidez e limitações (Butler, 2021; Rubin, 2017).
O gênero foi apresentado como categoria analítica (Scott, 1995), a fim de que sejam pensadas as formações de fantasia entre gênero e política, analisando, com base nas transformações históricas marcadas por revoluções e pela construção do que se entende por Democracia, o papel que é dado a cada pessoa através da divisão sexual, ou seja, sobre as razões do acesso desigual entre poder, o Estado e a masculinidade de seus representantes.
A partir da teoria queer e do feminismo negro e decolonial, pode-se perceber novas formas de contestação dos conceitos e categorias ocidentais e heteronormativas e a apresentação de dinâmicas de gênero diversas, nas quais algumas perspectivas sequer focam em marcadores sexuais e biológicos (Rea, 2018; Oyeronke, 2021).
Temos um arcabouço teórico-científico pelo qual podemos identificar que a Lei Maria da Penha, quando se refere ao gênero feminino, não está direcionando seus instrumentos para utilização apenas pelas mulheres marcadas biologicamente pelo sexo feminino, mas sim a todas as mulheres que se identificam com o gênero feminino, partindo do pressuposto que a lei ainda é pensada a partir do binarismo de gênero.
Portanto, sendo o Brasil o país que encabeça a lista de países onde mais se mata pessoas trans no mundo, das quais 99% são mulheres trans e/ou travestis, é preciso pensar na implementação de políticas públicas eficazes para proteção dessas mulheres, e um dos instrumentos que deve ser utilizado é a Lei Maria da Penha tendo em vista que 49% das mulheres trans sofrem violências no âmbito doméstico e familiar.
A Lei é de grande valia para a prevenção e repressão de práticas violadoras de seus direitos reconhecidos internacionalmente como Direitos Humanos, e é completa para consecução do objetivo, carece, entretanto, de uma melhor aplicação e interpretação dos termos ali contidos.
Por todo o exposto, percebe-se que ainda há divergências sobre a aplicação da Lei às mulheres trans, uma vez que conceitos como sexo e gênero ainda são disputados tanto no Poder Legislativo como no Judiciário. Em consequência, o Estado ainda não oferece condições de aplicação plena da mencionada legislação, embora haja um esforço no sentido de aplacar as divergências e garantir a proteção dessas mulheres, como observa-se a partir da decisão recente do STJ e com a determinação da obrigatoriedade de aplicação das diretrizes do Protocolo de Julgamento sob a Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça.
Referências
BUTLER, J. (2021) Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. AGUIAR, R. (tradutor). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 21ª edição.
CONNELL, R. (2016) Gênero em termos reais. MOSCHKOVICH, M. (tradutora) São Paulo: nVersos. 1ª edição.
HOOKS, B. (2018) O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. LIBÂNIO, A. (Tradutora). Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. 1ª edição.
LESFEM (2024) Feminicídios no Brasil 2023: monitor de feminicídios no Brasil. MARIANO, S. (coordenação). Londrina, PR: Ed. Dos Autores. 1ª edição.
LOPES, G. (2004) Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica. 1ª edição.
MENDES, S. (2017) Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo, SP: Editora Saraiva. 2ª edição.
OAKLEY, A. (2017) “Sexo e Gênero”. Tradução de Claudenilson Dias e Leonardo Coelho. Revista Feminismos, v. 4, n. 1, 64-71. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/30206. Consultado em: 29 jul. 2023.
OYEWÙMÍ, O. (2021) A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. NASCIMENTO, W. (tradutor). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. 1ª edição.
PIMENTEL, E.; ARAÚJO, E. (2020) “Gênero, Violência e Racismo: reflexões sobre violência contra as mulheres no Brasil a partir de uma perspectiva feminista e antirracista”. Revista Liberdades, Volume 11, Nro. 29, 360-384.
REA, C.; AMANCIO, I. (2018) “Descolonizar a sexualidade: teoria queer of color e trânsito para o Sul global”. Cadernos PAGU, Volume 1, Nro. 53, 1-38.
RUBIN, G. (2017) “O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo”. DIAS, J.(tradutora). Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 5-54.
________. (2017) “Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade”. DIAS, J. (tradutora). Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 55-111.
SCOTT, J. (1995) “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”. Educação e Realidade, Volume 20, Nro. 2, 71-99.
Documentos oficiais e institucinais
BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340, de 07 de Agosto de 2006.
______. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero (2021) Brasília: CNJ; Enfam. 1ª edição.
Informativos de Jurisprudência (2022) documento consultado em internet em 01/04/2024 em:https://processo.stj.jus.br/SCON/SearchBRS?b=INFJ&tipo=informativo&livre=%270732%27.cod.&force=yes .
Recurso Especial nº 1977124 SP 2021/0391811-0 (2022). Documento consultado em internet em 01/04/2024, em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202103918110&dt_publicacao=22/04/2022 .
Sexta Turma estendeu proteção da Lei Maria da Penha para mulheres trans. (2023) documento consultado em internet em 30/06/2023 em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/05042022-Lei-Maria-da-Penha-e-aplicavel-a-violencia-contra-mulher-trans--decide-Sexta-Turma.aspx