Volumen 34 No. 3 (julio-septiembre) 2025, pp. 78-89

ISSN 1315-0006. Depósito legal pp 199202zu44

DOI: 10.5281/zenodo.15609184

Uma análise do ecossistema dos Discursos de Ódio online e a relação deste com conflitos armados

Isabela Quartieri da Rosa* y Ana Carolina Sassi**

Resumo

Este artigo objetiva estudar os impactos dos discursos de ódio e da desinformação nos conflitos armados na atualidade a partir de uma análise a respeito do ecossistema dos discursos de ódio online. Diante disso, busca responder ao problema de pesquisa: Em que medida os fenômenos da desinformação e do discurso de ódio online impactam nos conflitos armados na atualidade? O estudo utiliza o método de abordagem dedutivo, pois parte de uma visão geral sobre os discursos e a formação da identidade na era da sociedade hiperconectada bem como os fatores que influenciam a atividade digital para, então, analisar os efeitos dos discursos extremistas na era digital, em especial a relação destes com a expansão dos conflitos armados. O método de procedimento utilizado foi o exploratório, aliado às técnicas de pesquisa bibliográfica e documental. A partir do estudo realizado, concluiu-se que é essencial para garantir a segurança e a dignidade das comunidades afetadas, a adoção de uma abordagem voltada para a análise dos riscos oriundos do ambiente digital visto que tais afetam também as zonas de guerra

Palavras-chave: Discurso de ódio; Conflitos armados; Sociedade em rede; Desinformação; Comunicação digital

Universidade Federal de Santa Maria. Rio Grande do Sul, Brasil*

ORCID: 0009-0007-0813-7932

E-mail: isabela.quartieri@acad.ufsm.br

Universidade Federal de Santa Maria. Rio Grande do Sul, Brasil**

ORCID: 0009-0004-6637-9671

E-mail: ana.sassi@acad.ufsm.br

Recibido: 04/12/2024 Aceptado: 10/02/2025

An analysis of the ecosystem of online Hate Speech and its relationship with armed conflicts

Abstract

This article aims to study the impacts of hate speech and misinformation in contemporary armed conflicts through an analysis of the online hate speech ecosystem. In light of this, it seeks to answer the research question: To what extent do the phenomena of misinformation and online hate speech impact armed conflicts today? The study employs a deductive approach, starting from a general overview of discourse and identity formation in the era of hyperconnected society, as well as the factors influencing digital activity, in order to analyze the effects of extremist discourse in the digital age, particularly its relationship with the escalation of armed conflicts. The methodological approach used was exploratory, combined with bibliographic and documentary research techniques. Based on the study conducted, it was concluded that adopting an approach focused on analyzing the risks arising from the digital environment is essential to ensure the safety and dignity of affected communities, as these risks also impact war zones

Keywords: Hate speech; Armed conflicts; Network society; Disinformation; Digital communication

Introdução

O presente trabalho pretende chamar atenção aos impactos dos discursos de ódio e da desinformação nos conflitos armados na atualidade. Tal estudo é relevante e fundamental ao passo que se tornou imprescindível conscientizar a sociedade de que o processo de comunicação vem sofrendo transformações onde a internet como mídia não apenas informa seus usuários, mas também modula o exercício da cidadania e da formação de opinião por meio das informações por ela propagadas.

Elementos como a globalização, a hiperconectividade e a polarização nos tempos atuais, tornou a internet também cenário de disseminação de ideologias extremistas e discursos de ódio. Com isso, verifica-se que estar conectado tem se tornado um flagrante perigo e, portanto, há um interesse multisetorial de que temas como este sejam enfrentados.

Tem-se como objetivo a análise do ecossistema1 dos discursos de ódio online e a influência de tal cenário para a promoção de conflitos armados. A partir disso, o problema de pesquisa investigado foi: Em que medida os fenômenos da desinformação e do discurso de ódio online impactam nos conflitos armados na atualidade?

Para tanto, o estudo utilizou o método de abordagem dedutivo, partindo da visão geral sobre os discursos e a formação da identidade na era da sociedade hiperconectada bem como os fatores que influenciam a atividade digital para, então, analisar os efeitos dos discursos extremistas na era digital, em especial a relação destes com a expansão dos conflitos armados. O método de procedimento utilizado foi o exploratório, visto que busca entender suas características e relações interseccionais, porém sem esgotar o objeto de análise, colaborando para expansão deste enfoque em reflexões futuras, aliando-se, por fim, às técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.

Os Discursos de Ódio na Sociedade em Rede

As redes de comunicação desde seu surgimento desempenharam um papel importante na sociedade, mantendo a população informada, servindo de entretenimento e popularizando a participação democrática. Em virtude do avanço das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), hoje em dia é berço de construção, aproximação e interação social, tendo influência significativa na culturalidade e trazendo novas formas e ferramentas para o estabelecimento das relações de poder.

A presença nas tecnologias de informação e comunicação é parte indissociável da vida humana. Interagir, socializar e pertencer são premissas que denotam a importância das redes de comunicação na sociedade contemporânea. Hoje as atividades sociais estão profundamente ligadas à internet, que desempenha um papel crucial em seu desenvolvimento e realização.

Uma vez que a internet se transforma e avança na sociedade, as redes de comunicação passam a integrar o cotidiano, mudando a forma de comunicação. Essa mudança resultou em um processo de comunicativo instantâneo e veloz, que permite a disseminação de pontos de vista, ideologias e culturas. Os processos de comunicação online fazem parte da construção da subjetividade. É por meio deste mecanismo que é possível acessar informações, conhecimento, conhecer outras culturas, aprender outros modos de vida antes inacessíveis.

Segundo Ugarte a atividade digital se perfectibiliza a partir da construção de três fatores: discurso, ferramenta e visibilidade. O discurso visa atrair e cativar pessoas que querem e acreditam que podem transformar a realidade que vivem, integrando-as nesse processo que usa da incitação da vontade e da imaginação. Por meio do discurso são propostas diversas maneiras de olhar o mundo, construindo o componente identitário “que facilita, por sua vez, a comunicação entre pares desconhecidos sem que seja necessária a mediação de um centro”. (2008, 40-41)

Através da construção de uma empatia a partir do compartilhamento de dores e esperanças no livre espaço público da internet se desenvolve as conexões humanas que se aglutinam através de redes no ambiente virtual. As plataformas digitais se tornam espaço de reprodução de crenças e valores e fazem com que pessoas de todas as idades e condições possuam espaço para participação e interação social (Castells, 2013). Mais do que compartilhar opiniões e pensamentos, as interações digitais são geradoras de relações sociais complexas que irão constituir laços sociais por meio da conexão e manter a rede na Internet (Recuero, 2009).

O segundo fator se refere às ferramentas utilizadas para o desenvolvimento das conexões no ambiente digital. Ao utilizar do potencial para gerar consensos e transmitir ideias, as plataformas digitais devem estar à disposição para o uso facilitado e viralizador pelos seus usuários (Ugarte, 2008). Tais estratégias midiáticas se valem por vezes do sensacionalismo, bem como da utilização de memes2, da troca de links e de botões de compartilhamento e envio de conteúdo que os atores sociais difundiram as motivações e valores de seus usuários.

Sobre a utilização dos memes, leciona Recuero:

A presença de memes é relacionada ao capital social, na medida em que a motivação dos usuários para espalhá-los é, direta ou indiretamente, associada a um valor de grupo. Por exemplo, as pessoas que espalham os recados com imagens acreditam estar fazendo algo positivo, que deixará aquele que recebeu a mensagem contente. Logo, há intencionalidade na construção/aprofundamento de um laço social, que é ultimamente explicado pela necessidade de capital social. Do mesmo modo, muitas pessoas que espalham mensagem de vírus e informações o fazem com a intenção de auxiliar e mostrar-se bem informadas, o que também pode ser associado à construção do capital social. (2009, 130).

Por conseguinte, a visibilidade, segundo Ugarte (2008), é o terceiro fator que faz parte da complexidade da formação das atividades digitais. Esta possui o escopo de disseminar conteúdos e serve para que as pessoas possam se reconhecer em outras pessoas ou opiniões, gerando conectividade entre os usuários. A visibilidade está intimamente ligada à popularidade no ambiente digital, visto que ter sua ideia compartilhada por outros usuários denota um poder de influência numa relação de causa e consequência das impressões que geram nos demais (Recuero, 2009). Assim, a depender do número de seguidores que este ator possui, maior será a amplitude que suas publicações alcançarão e afetarão a sociedade hiperconectada.

Segundo Castells (2013), é nessa complexa rede que os seres humanos criam significado, conectando suas redes neurais com as redes da natureza e com as redes sociais. Desse modo, a sociedade em rede é, na atualidade, a principal fonte da produção de significados por meio do processo de comunicação socializada.

Entretanto, ao passo que as atividades digitais em rede apresentam possibilidades benéficas aos seus usuários, as redes de comunicação também constituem terreno fértil para disseminação de intolerancia, preconceito e discriminação. O ambiente digital, trouxe a quebra de barreiras geográficas e linguísticas, mas também oportunizou a disseminação de discursos que visam ofender e discriminar sem obstáculos, populações, culturas e subjetividades, espalhando o ódio e utilizando-se dele para obter visualização social e manter o poder através da exclusão do outro, do diferente.

Para compreender o fenômeno da disseminação desproporcional do ódio no ambiente virtual, é necessária uma análise acerca de seu mecanismo de funcionamento dentro da sociedade. O ódio é uma estratégia de poder que move sentimentos e práticas negativas, como o estigma, a discriminação o preconceito, a segregação, o medo individual e compartilhado. Quando associado ao discurso e às práticas “assenta-se no uso coletivo da linguagem para salientar repetidamente códigos de comoção e gramáticas de pertencimento e segregação, incitando uma ação coletiva que propaga, escala e intensifica a repetição e o contágio e, consequentemente, o risco e danos contra pessoas, comunidades ou populações” (MDHC, 2023, 24).

Uma definição para discursos de ódio, segundo Sarmento, é: “manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos ligados à etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental, orientação sexual, dentre outros fatores” (2006, 54). De acordo com Silva et al. (2011), os elementos centrais do discurso de ódio são a externalidade e a discriminação. A externalidade se refere à necessidade de pelo menos dois atores sociais para que o discurso se manifeste: um agressor e um agredido. Esta manifestação somente será observada de forma completa ao ser externada, assim tornando-se conhecida por outrem e, por consequência, trazendo prejuízo para a coletividade. Tal característica é elemento essencial para a perfectibilização do discurso odiento ao passo que o mero pensamento não externado, ou seja, vazio de expressão discursiva, não causa danos algum a quem possa ser seu alvo, assim sendo inconcebível a intervenção jurídica, pois a todos é livre o pensar (Silva et al., 2011).

Portanto, o interesse jurídico e governamental de intervir ocorre quando o pensamento passa a existir no mundo dos fatos, estando à disposição do ofendido e dos potenciais instigadores de novos discursos de ódio. Assim, é necessário estratégias para reduzir (e prevenir) os danos e tutelar direitos porventura violados.

Ademais, elemento essencial dos discursos de ódio diz respeito a finalidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais destinatários das mensagens odientas. Este comportamento revela o desprezo por pessoas de um determinado grupo com características específicas de seus membros (Silva et al., 2011). A atitude odienta manifesta a vontade do emissor de inferiorizar o receptor, evidenciando que ele não deveria fazer parte do mesmo contexto social e/ou desvalorizar a sua existência como cidadão.

Exemplo disso se trata da violência cometida com motivações nazifascistas. Esse fenômeno vem aumentando em todo o mundo nas últimas décadas apesar do extenso trabalho da propaganda anti fascista realizado na Europa após o final da Segunda Guerra. Tal movimento não impediu que ideologias extremistas fossem absorvidas por novos partidos políticos em países como Alemanha, Itália e França nos dias de hoje (Almeida, 2008).

A incorporação de ideias do movimento neonazista pela sociedade é o que Adriana Dias chama de propaganda de terceira fase. Segundo a autora “enquanto na primeira fase esses militantes querem comprar uma elite neonazista, falando de branquitude de um nível espiritual e dirigindo-se a pessoas que já se interessam pelo tema e se organizando em células, na terceira fase o público-alvo é o homem médio da sociedade”. (2022, 3)

Neste cenário, aqueles que se sentem maioria passam a ter receio de que as minorias os tirem do lugar que eles acreditam ser natural deles. A partir disso a ideia de extermínio é difundida de tal forma que se torna senso comum e é isso que o movimento quer: que termos racistas fiquem cada vez mais “deglutíveis” de modo que a sociedade aceite tais manifestações de ódio de maneira mais palatável (Dias, 2022).

Além disso, conforme Lenharo (1986), os vestígios de regimes ditatoriais deixam marcas que resultam na miséria do eu, moldando e condicionando os indivíduos, deformando micropoderes, ações e discursos. Quando esses aspectos são contaminados, promovem a intolerância e o ódio. Esse estado de repressão despolitiza os cidadãos por meio de uma máquina de propaganda intensificada, que estimula a passividade e a conformidade, excluindo qualquer forma de reflexão, contestação ou participação das massas.

O discurso totalitário se baseia na representação de uma ordem natural, absoluta e inquestionável, necessitando, para isso, de uma aliança com outro poder igualmente forte. Assim, um Estado com características fascistizantes utiliza a religião cristã, incorporando suas intenções nos discursos políticos, esportivos, médicos, eugenistas e, especialmente, na formação da identidade e na produção cultural. Ao empregar ferramentas como o negacionismo, a desinformação e o revisionismo, a figura mística do salvador, do Führer, do mito, assume a missão divina de revelar a “verdade” real àqueles que buscam enxergar além da escuridão.

Portanto, as questões em torno do discurso de ódio se relacionam com a identidade tanto entre os indivíduos quanto no local onde vivem, pois essa se forma pelo reconhecimento correto ou incorreto do outro no mundo e afetará significativamente a forma de exercer cidadania. Distorções e preconceitos podem prejudicar membros de determinados grupos na medida em que a identidade desses se forma de uma imagem limitada, de inferioridade ou desprezo (Santos, 2016).

É preciso entender que problemas do presente, como a alavancada do ódio e a retomada do protagonismo político de pensamentos extremistas geradores de conflitos armados na atual década, direcionam o olhar sobre o passado. Ao analisar a dimensão do real, os símbolos, a subjetividade, a produção de vontades e a história, podemos compreender como se constroem os discursos que moldam indivíduos que não apenas perpetuam o ódio, mas também ocupam posições de poder em um estado democrático de direito.

O ecossistema do ódio online e os conflitos armados

O ódio está intimamente ligado às relações de política, comunicação e sociabilidade, uma vez que os sintomas são provenientes dos setores socioculturais e apontam para a construção da cultura do ódio. Isso porque, o meio hegemônico decorrente dos algoritmos de recomendação das redes sociais erige valores e produz modelos de identidades dentro de um jogo dialético entre “nós” e os outros, nitidamente expressando redes de viralização do ódio.

Ferraz e Clair (2019) denunciam que o contágio social de valores odientos ocorre, na grande maioria, de forma inconsciente, através da imitação e reprodução. Tal fato decorre da sutileza que reveste o discurso midiático, cobrindo-o com um genuíno debate preocupado com a ideologia política do indivíduo.

Elemento importante nesta equação que resultou no crescimento e trivialidade do ódio é a desinformação virtual e, associada a esta, a propagação de informações falsas. Esse fenômeno é vasto e multifacetado, e, conforme a Comissão Europeia (2018), é produzido, apresentado e disseminado com o objetivo de obter benefícios econômicos ou enganar intencionalmente o público, podendo ocasionar danos à sociedade.

Claire Wardle e Hossein Derakhshan, produziram material lançado em junho de 2024 pelas Organização das Nações Unidas denominado” A Conceptual Analysis of the Overlaps and Differences between Hate Speech, Misinformation and Disinformation” e afirmam que existe no ecossistema digital atual uma desordem da informação formada por informações erradas (misinformation), desinformação (disinformation) e má-informação (mal-information). Os autores estabelecem algumas balizas para diferenciar cada um dos termos, mas ressaltam que não há um consenso na doutrina acerca de tal diferenciação (Nações Unidas, 2024).

Para eles, a desinformação está relacionada a informações falsas compartilhadas de forma consciente e intencional. Ou seja, a diferença essencial entre a informação errada e a desinformação estaria na existência ou não de uma intenção de quem compartilha esse tipo de mensagem. A desinformação se caracterizaria quando a pessoa sabe que está compartilhando uma informação falsa e faz isso conscientemente (Nações Unidas, 2024).

Assim, a desinformação retira a capacidade de discernimento, gerando um ambiente de crescente descrença e incapacidade de diferenciação do real e do fake. Ademais, outro fenômeno que se correlaciona com a desinformação é a polarização de opiniões na sociedade (Toffoli, 2019). Isso porque o direcionamento de conteúdo ajustado pelos algoritmos inteligentes das redes sociais minimiza a possibilidade de confronto entre opiniões diferentes e extingue o debate de ideias, elemento essencial para a manutenção da democracia. Este cenário, segundo Toffoli é ambiente propício para a disseminação de discursos de ódio e intolerância, remetendo a preceitos semelhantes às ideologias fascistas.

Ao passo que, segundo Cardoso, “a autonomia das escolhas de decisão está diretamente ligada com a nossa capacidade de interação com a mídia” (2007, 28), a sociedade como um todo – poderes públicos, entidades privadas e sociedade civil - devem se engajar na compreensão do fenômeno da desinformação virtual e no enfrentamento da temática, evitando a propagação de conteúdo falacioso ou odiento. Analisar as novas tecnologias de propagação de ideias e os atores sociais que contribuem para a formação da opinião pública atual é exercício necessário e importante para a busca de novos arranjos que mitiguem os discursos de ódio na Internet.

Somado a isso, os discursos de ódio, neste contexto, podem ser definidos por qualquer tipo de comunicação em fala, escrita ou comportamento, que ataca ou utiliza linguagem pejorativa ou discriminatória em referência a uma pessoa ou a um grupo com base em quem eles são, ou seja, com base em sua religião, etnia, nacionalidade, raça, cor, ascendência, gênero ou outro fator de identidade:

Discurso de ódio, desinformação e desinformação representam categorias distintas de discurso prejudicial, mas não há definições universalmente aceitas para esses termos. Identificar a “intenção” do orador ou criador, um elemento-chave para distinguir essas formas, adiciona complexidade à sua operacionalização e resposta. Além disso, a intersecção de discurso de ódio, desinformação e desinformação pode amplificar seus impactos negativos em ambientes online e offline. Isso complica ainda mais os esforços para operacionalizar respostas, conduzir pesquisas e fazer comparações significativas em diferentes contextos (Nações Unidas, 2024, 04, tradução nossa).

O relatório ressalta, ainda, que na prática, distinguir entre discurso de ódio, informação errada e desinformação pode ser desafiador. A externalidade do discurso odiento, que apesar de ser uma prática social que se utiliza da linguagem e da comunicação para promover violência, tende a influenciar em atitudes de desprezo e intolerância que menosprezam, desqualificam e inferiorizam o outro. Essa prática afeta diretamente a diferença e a identidade através do uso de estigmas que categorizam e estereotipam segmentos de usuários (Santos, 2016). Tais comportamentos são extremamente prejudiciais quando direcionados às populações afetadas por conflitos armados.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2015, delimitou algumas regiões do mundo como aquelas afetadas por conflitos e de alto risco. Essas áreas são caracterizadas pela presença de conflitos armados, violência generalizada ou outros riscos significativos de danos aos indivíduos (OCDE,2015).

Algumas características críticas são observadas nestas áreas, quais sejam: volatilidade, a transmutação dos conflitos, as limitações do direito internacional frente aos interesses das nações, o uso estratégico da desinformação, a intenção de causar prejuízo a eficácia das organizações de paz e os impactos da exclusão digital por esses povos em zona de conflito. O uso estratégico da desinformação, em especial, pode ser combinado a táticas de guerra para confundir os limites entre fato e ficção, criando novas realidades e agravando os danos já causados pelos conflitos armados (OCDE,2015).

De acordo com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (2023), a desinformação e a informação falsa podem aumentar a exposição das pessoas a riscos e vulnerabilidades. Os discursos de ódio, por sua vez, ameaçam diretamente ou indiretamente a segurança e a dignidade das populações civis. Além disso, a informação falsa pode comprometer a capacidade das organizações humanitárias de atuar em determinadas áreas, deixando sem atendimento às necessidades das pessoas afetadas por conflitos armados ou outras formas de violência. A disseminação de informações manipuladas pode, ainda, minar a confiança dentro das comunidades e prejudicar a reputação das operações humanitárias.

Exemplo disso tem-se a desinformação que circulou nas redes sociais de que a ONU estaria vendendo sacos de trigo a preços exorbitantes em Gaza. Na realidade, a Agência da ONU de Assistência aos Refugiados Palestinos, Unrwa, continua fornecendo pão aos deslocados em seus abrigos e distribuiu farinha de trigo gratuitamente para aumentar a produção em cerca de 16 padarias.

De acordo com um relatório da agência, “para apoiar as famílias deslocadas e resolver o problema da escassez de pão, a Unrwa está fornecendo farinha às padarias locais para dar pão às famílias a uma taxa subsidiada”. A entidade, que presta auxílio aos refugiados palestinos desde 1950, é o maior fornecedor de ajuda humanitária da ONU em Gaza (Nações Unidas, 2023).

A disseminação de informação falsa, desinformação e discursos de ódio pode incitar atos de violência em uma comunidade, especialmente contra grupos vulneráveis, minorias étnicas e organizações, incluindo equipes humanitárias e médicas. Quando a distorção da informação compromete a capacidade das pessoas afetadas por conflitos de tomar decisões informadas sobre necessidades essenciais, como acesso à segurança, abrigo e cuidados de saúde, os resultados podem resultar em danos significativos (Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 2023).

A maioria dos usuários erroneamente acredita que os discursos de ódio ou a desinformação se enquadram nas categorias consideradas protegida pela lei internacional de direitos humanos, que defende a liberdade de expressão. Por isso, as respostas a esses discursos devem ser cuidadosamente projetadas e implementadas para evitar consequências não intencionais, como aumento da censura. No entanto, ignorar os danos potenciais destes discursos pode, ao longo do tempo, levar à incitação à discriminação, hostilidade ou violência (Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 2023).

Assim, constata-se a relevância de um direito internacional dos direitos humanos forte e o suporte estatal necessário para buscar respostas que equilibrem a proteção da liberdade de expressão com a mitigação dos efeitos prejudiciais do discurso de ódio e da desinformação. Em áreas de conflito, onde as tensões sociais são exacerbadas, esses fenômenos podem proliferar de maneira alarmante, tornando-se extremamente perigosos e potencialmente catalisadores de violência e instabilidade. A complexidade desse cenário demanda abordagens estratégicas que contemplem tanto a prevenção quanto a resposta a esses desafios emergentes.

A inação das plataformas em defesa dos direitos humanos é alarmante. Organizações internacionais já alertaram as grandes empresas de tecnologia para que tomassem medidas contra discursos violentos direcionados tanto à população palestina quanto à israelense, por exemplo. Contudo, a realidade é diferente. Estudos identificaram que algumas Big Techs estão empregando uma estratégia de controle do fluxo de informações chamada shadowban3, que busca censurar certas postagens, reduzindo o alcance de alguns conteúdos em favor de outros (Soares, 2023).

Esta e outras utilizações da desinformação e dos discursos de ódio como mecanismo de acirramento dos conflitos armados violam o Direito Internacional Humanitário (DIH) e outras normas do direito internacional. Concretamente, o DIH proíbe o incitamento a violações dos seus princípios (incluindo crimes de guerra), online e offline. Entretanto, a ameaça de violência só é proibida se for possível demonstrar que o principal objetivo dessas atividades é espalhar o terror entre a população civil (Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 2023).

Além disso, o DIH também proíbe o incitamento à violência contra operações e equipes humanitárias, e a difusão de desinformação destinada a obstruir ou frustrar a atuação humanitária nos locais de conflito. Os Estados e outras partes envolvidas em conflitos armados não só têm de abster-se de tais operações; devem também proteger as organizações humanitárias imparciais quando as suas operações são ameaçadas por agentes privados, incluindo empresas (Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 2023).

De acordo com os pesquisadores Sean Cordey e Joelle Rizk, a adoção e o uso de novas tecnologias digitais em conflitos modernos — desde a disseminação de informações até operações cibernéticas — geram novos riscos e podem causar danos reais aos direitos, à vida, à segurança, à dignidade e à resiliência da população civil (Eszklarz, 2024). Compreender esses riscos é fundamental para o trabalho de proteção na era digital.

A utilização de tecnologias digitais por diversos atores em contextos de conflito armado — incluindo Estados, grupos armados não estatais, organizações criminosas e empresas privadas — representa uma das transformações mais significativas nos conflitos contemporâneos. Embora as operações cibernéticas e digitais não ocorram isoladamente, as intenções e expectativas associadas ao uso dessas tecnologias podem trazer uma série de riscos, que podemos denominar de riscos digitais. Esses riscos podem impactar a vida, a segurança, a dignidade e a resiliência das populações civis, resultando em consequências prejudiciais que se somam ao sofrimento causado pelas operações cinéticas (Eszklarz, 2024).

Esses comportamentos e tecnologias digitais podem impactar de forma abrangente e restringir direitos fundamentais, como liberdade de expressão, reunião, movimento, segurança pessoal, identidade e privacidade. No entanto, a preocupação central do CICV em contextos de conflito reside nas consequências prejudiciais para a vida, segurança e integridade física e mental das populações afetadas, incluindo sua dignidade, capacidade de autoproteção e resiliência, subsistência econômica e acesso a serviços essenciais e humanitários (Eszklarz, 2024).

Embora não se deva ignorar os benefícios que a tecnologia pode trazer aos conflitos — como o aumento do acesso a informações vitais e a redução de danos colaterais — o trabalho de proteção precisa considerar os riscos associados à era digital. Em outras palavras, é fundamental assegurar a proteção dos direitos das pessoas em situações onde suas vidas interagem com o ambiente digital. Conforme o Direito Internacional Humanitário (DIH), civis e bens civis devem ser respeitados e não devem ser alvos de ataques durante conflitos armados, uma obrigação que também se aplica às operações cibernéticas e digitais (Eszklarz, 2024).

Dessa forma, os ensinamentos dos autores indicam que os riscos digitais em um contexto de proteção podem abranger a segurança de dados e outros ativos digitais, mas vão além dessas questões. Eles estão ligados ao uso de tecnologias digitais em cenários de conflitos armados e à maneira como essa aplicação expõe a população civil a perigos, impactando seus direitos, segurança e dignidade, mesmo quando os abusos ou violações ocorrem exclusivamente online, como é o caso de muitos discursos de ódio atualmente.

Em outras palavras, qualquer risco potencializado ou mediado por tecnologias digitais deve ser considerado, principalmente quanto este contexto se dá frente à onipotência existente nos conflitos armados. Assim, o de proteção da população hipervulnerável que vive em zonas de conflitos deve abarcar também o cuidado quanto a comportamentos e violações que ocorrem em interações humanas, entre humanos e máquinas, e entre máquinas, como ataques cibernéticos direcionados a civis ou a infraestruturas de uso dual.

Conclusão

Durante o trabalho, foi possível explorar os impactos dos discursos de ódio e da desinformação nos conflitos armados na atualidade, chamando a atenção para a hipervulnerabilidade digital da população afetada por esses conflitos. Isso porque, é importante considerar que a desinformação e a informação falsa podem aumentar a exposição das pessoas a riscos e vulnerabilidades e comprometer a capacidade das organizações humanitárias de atuar em determinadas áreas, deixando sem atendimento às necessidades das pessoas afetadas por conflitos armados ou outras formas de violência. Os discursos de ódio, por sua vez, oferecem graves riscos à segurança e à dignidade das populações civis.

Nesta perspectiva, conclui-se que não se deve ignorar os benefícios que a tecnologia pode trazer aos conflitos, como o aumento do acesso a informações vitais e a redução de danos colaterais. Entretanto, deve-se considerar também a condição de hipervulnerabilidade existente neste cenário e que a proteção dos direitos precisa considerar os riscos associados à era digital.

Qualquer risco amplificado ou mediado por tecnologias digitais deve ser cuidadosamente avaliado, especialmente diante da onipotência observada em conflitos armados. Portanto, o esforço de proteção da população hipervulnerável em áreas de conflito deve incluir também a atenção a comportamentos e violações que se manifestam nas interações entre humanos, entre humanos e máquinas, e entre máquinas. Tal abordagem voltada para a análise dos riscos oriundos do ambiente digital é essencial para garantir a segurança e a dignidade das comunidades afetadas pelos conflitos armados.

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UGARTE, David. O poder das redes: manual ilustrado para pessoas, organizações e empresas chamadas a praticar o ciberativismo. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008.

Documentos oficiais e institucionais

COMISSÃO EUROPEIA. Combater a desinformação em linha: Grupo de Peritos defende uma maior transparência entre as plataformas em linha. Comunicado de imprensa. 12 mar. 2018. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/IP_18_3370. Acesso em: 20 set. 2024.

COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Informação falsa, desinformação e discursos de ódio: perguntas e respostas. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/document/informacao-falsa-

MDHC. Relatório de Recomendações para o Enfrentamento do Discurso de Ódio e o Extremismo no Brasil. Christian Ingo Lenz Dunker, Débora Diniz Rodrigues, Esther Solano. et al. Camilo Onoda Luiz Caldas, Manuela Pinto Vieira d ́Ávila, Brenda de Fraga Espindula. et al (Coord.). 1. ed. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/julho/mdhc-entrega-relatorio-com-propostas-para-enfrentar-o-discurso-de-odio-e-o-extremismo-no-brasil. Acesso em: 23 ago. 2024.

NAÇÕES UNIDAS. A Conceptual Analysis of the Overlaps and Differences between Hate Speech, Misinformation and Disinformation. 2024. Disponível em: https://peacekeeping.un.org/sites/default/files/report_-_a_conceptual_analysis_of_the_overlaps_and_differences_between_hate_speech_misinformation_and_disinformation_june_2024_qrupdate.pdf. Acesso em: 01 out. 2024.

NAÇÕES UNIDAS. ONU nega venda de trigo a preços exorbitantes em Gaza e reforça distribuição de ajuda alimentar. ONU News, 10 nov. 2023. Disponível em: . Acesso em: 3 abr. 2025.

OCDE. Avaliar as atividades de construção da paz em situações de conflito e de fragilidade: Compreender melhor para obter melhores resultados. Éditions OCDE. Paris, 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264248403-pt. Acesso em 29 set. 2024.

desinformacao-discursos-odio-perguntasrespostas. Acesso em: 02 ago. 2023.


1 Em apertada síntese, um ecossistema se dá a partir de um conjunto de comunidades que vivem em um determinado local e interagem entre si e com o meio ambiente, constituindo um sistema estável, equilibrado e autossuficiente. Em razão da complexidade e do caráter multifacetado dos discursos de ódio online, optou-se por discutir o ambiente de pesquisa a partir do presente termo.

2 Um meme é uma mensagem, imagem, vídeo ou texto que se espalha rapidamente pela internet, geralmente com um tom jocoso ou irônico. Memes podem ser compartilhados em redes sociais e podem viralizar.

3 Shadowban, ou banimento fantasma, é uma medida de moderação de redes sociais que restringe a visibilidade de um usuário. Tal restrição silenciosa pode ser total ou parcial e as atividades do usuário parecem normais para os outros, mas o usuário pode não ser notificado da restrição.