UTOPÍA Y PRAXIS LATINOAMERICANA. AÑO: 22, n°. 79 (OCTUBRE-DICIEMBRE), 2017, PP. 41-55 REVISTA INTERNACIONAL DE FILOSOFÍA Y TEORÍA SOCIAL
CESA-FCES-UNIVERSIDAD DEL ZULIA. MARACAIBO-VENEZUELA.
Possible relations between multiculturalism and curricular theories of Physical Education Posibles relaciones entre multiculturalismo y teorías curriculares de la Educación Física Marcos GARCIA NEIRA
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Brasil.
Resumo
Nas últimas décadas, as comuidades minoritárias têm reivindicado o direito de se fazerem representar em todos os espaços sociais. No âmbito educacional, enquanto campo teórico e político, o multiculturalismo passou a influenciar de diferentes maneiras as propostas curriculares. Tomando como base a construção elaborada por Peter McLaren, o presente artigo descreve e analisa as concepções em circulação, confronta-as com as teorias curriculares da Educação Física e apresenta o multiculturalismo crítico como alternativa para inpirar o ensino do componente na Educação Básica.
Palavras-chave: Cultura; Currículo; Educação Física; Multiculturalismo.
Abstract
In the last decades, the minority communities began to claim the right to be represented in all social spaces. As a theoretical and political field, multiculturalism began to influence curricular proposals in different ways. Based on the construction by Peter McLaren, this article describes
and analyzes the concepts in circulation, confronts them with the curriculum theories of Physical Education and presents critical multiculturalism as an alternative to the teaching of the component in Basic Education.
Keywords: Culture; Curriculum; Physical Education; Multiculturalism.
Resumen
En las últimas décadas, las comuidades minoritarias vienen reinvindicado el derecho de hacerse representar en todos los espacios sociales. En el ámbito educativo, en cuanto campo teórico y político, el multiculturalismo llegó a influir de diferentes maneras en las propuestas curriculares. Tomando como base la construcción elaborada por Peter McLaren, en el presente artículo se describen y analizan las concepciones en circulación, las confronta con las teorías curriculares de la Educación Física y presenta el multiculturalismo crítico como alternativa para la inspiración en la enseñanza del componente en la Educación Básica.
Palabras clave: Cultura; Currículo; Educación Física; Multiculturalismo.
O artigo sintetiza a longa discussão travada no livro Ensino de Educação Física, publicado pela editora Cengage Learning.
Recibido: 19-07-2017 ● Aceptado: 13-08-2017
Usado como meta, conceito, atitude, estratégia e valor, o multiculturalismo aparece no centro das modificações demográficas das sociedades ocidentais. Vários países enfrentam movimentos migratórios e imigratórios e, simultaneamente, movimentos de conscientização racial e de gênero que culminam com a obrigação do enfrentamento de questões relativas à definição das funções das suas instituições sociais. Nessas nações os valores constituídos em torno da sua abertura social e democrática sofrem questionamentos, sendo impossível passar despercebidas as intensas transformações culturais. Neste contexto, os ocidentais chegam à conclusão que o multiculturalismo representa sua condição de vida, vivemos em uma sociedade multicultural.
Kincheloe e Steinberg2 observam muitas formas de responder à diversidade étnica, de classe sócio- econômica, de gênero, linguística, cultural, de preferência sexual, de idade, de deficiências. Geralmente as respostas sofrem as influências dos interesses sociais, políticos e econômicos particulares. Nesse sentido, as relações de poder desempenham um importante papel considerando a configuração das formas pelas quais os sujeitos, organizações, grupos e instituições reagem à realidade multicultural. A natureza desta resposta no âmbito do ensino denomina-se educação multicultural.
Aeducação multicultural teve sua gênese nos anos 1960 como produto de movimentos reivindicatórios aos direitos civis como a liberdade, a participação política e igualdade econômica por parte de professores e pais que se alinharam às lutas sociais de grupos étnicos sitiados e combatidos durante o conflituoso processo de integração social ocorrido nos Estados Unidos. A educação multicultural é um dos produtos do movimento ativista afroamericano e do seu envolvimento nos problemas educacionais, especialmente com relação ao currículo. O multiculturalismo alcançou muitas outras nações, fortalecendo-se enquanto ação, campo teórico e político, por meio do qual as comunidades minoritárias lutam por direitos e representação. O termo é originário do prefixo multi, que foi adotado para abraçar diversos grupos e da expressão cultura - ao invés de racismo - para que o público de educadores brancos pudesse ouvir.
Em linhas gerais, é possível afirmar que a educação multicultural é uma tentativa de responder ao contexto multicultural refletido na escola. Parte do pressuposto que gestores e professores identificam o gradiente de culturas na sala de aula, o que os obriga a levar em consideração essa característica do público no momento da organização e desenvolvimento do trabalho pedagógico.
Qualquer que seja a postura adotada, a educação multicultural sofre influências de uma entre as várias concepções de multiculturalismo existentes. McLaren3 compreende como multiculturalismo um conjunto de posições bastante diversas, dentre as quais destaca o multiculturalismo conservador, liberal, pluralista, essencialista de esquerda e crítico.
Embora essas categorias dificilmente se apresentem de forma pura, serão, a seguir, sucintamente descritas e confrontadas com a teorização curricular da Educação Física. O estabelecimento dessa relação pode configurar-se como informação importante para os professores que cotidianamente se deparam com contextos multiculturais e se comprometem à realização de pedagogias a favor das diferenças.
McLaren4 explica que o multiculturalismo conservador ou monoculturalismo situa-se a favor da superioridade da cultura patriarcal ocidental, se apresenta como uma forma de neocolonialismo ao
KINCHELOE, J & STEINBERG, S (2012) Repensar el multiculturalismo. Barcelona: Octaedro.
McLAREN, P (2000). Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez.
Ibídem.
recuperar a tradição colonialista em pleno século 21. Apesar de tentarem esconder-se das acusações de racismo, sexismo ou preconceito de classe, aqueles que adotam essa postura culpabilizam os que não se encaixam no perfil machista, branco e de classe média pelo atual estado de calamidade no qual se encontra a sociedade. Segundo ótica multicultural conservadora, todos (diferentes e iguais) se beneficiariam caso se inclinassem às glórias da civilização ocidental.
Em sua nova manifestação monocultural, os neocolonizadores da cultura dominante atacam não só os movimentos de libertação como também, qualquer preocupação política ou institucional pelos efeitos do racismo, sexismo ou preconceitos de classe. Neste contexto, os monoculturalistas tentam abortar o que consideram ataques multiculturais à identidade ocidental, desqualificando qualquer preocupação com a injustiça e o sofrimento dos grupos marginalizados nas escolas e noutras instituições.
Os sujeitos que aceitam o ponto de vista neocolonial normalmente consideram que as crianças negras e pobres possuem deficiências e colocam-nas em uma posição inferior às crianças brancas da classe média. As alusões a essa inferioridade raramente são feitas em público de forma aberta e, sim, se constituem em insinuações sobre os valores familiares e sobre o que constitui a forma ideal de ser, agir e pensar. Diante desse posicionamento, os valores familiares ideais adquirem natureza racial e classista, servindo para justificar e fundamentar posturas opressoras com relação àqueles que se encontram à margem, posto que, presumivelmente, os pobres carecem de valores e por isso não conseguem ser bem sucedidos, logo, a escola ideal é aquela na qual predomina a classe média.
A partir da teorização curricular5 elaborada por Neira & Nunes6 é possível identificar nos currículos ginástico e esportivista da Educação Física uma postura multicultural conservadora. As duas propostas defendiam7 a apropriação pelos alunos de conhecimentos universais prioritariamente eleitos – os modelos ginásticos e algumas modalidades esportivas europeias e estadunidensses. As aulas do componente nessas concepções organizam-se através de exercícios que conduzem os estudantes à aquisição de determinadas técnicas consideradas primordiais a todos os cidadãos. Tanto o currículo ginástico quanto o esportivista veiculam determinados valores, formas de ver o mundo e conhecimentos tidos como ideais, independentemente do público escolar.
Os porta-vozes desse pensamento comumente se esquecem das posturas de resistência com as quais os estudantes enfrentavam essas aulas8, inventando motivos para delas escapar como dores no corpo ou “atestados médicos” falsos, ausência de uniforme etc. A realização da aula passivamente por uma parte do grupo significava simplesmente a sujeição àquela prática social devido ao compartilhamento dos modos de entender o mundo e uma posse relativa do patrimônio veiculado.
Por outro lado, aqueles que não conseguiam alcançar determinados patamares eram consciente ou inconscientemente excluídos, pois, afinal, no modelo carencial da educação monoculturalista, os problemas se localizam no estudante. Esse enfoque distancia a consciência dos representantes das elites da realidade da pobreza, do sexismo, do racismo e dos seus efeitos no processo educacional. A análise de qualquer questão cultural a partir de um modelo monocultural implica no estudo dos problemas que causam o desvio social. Nesta forma de pensar não existe a supremacia branca, o patriarcado ou o elitismo de classe e, consequentemente, não há necessidade dos representantes da cultura dominante
Tomaz Tadeu da Silva em Documento de identidade: uma introdução às teorias de currículo, explica que uma teoria de ensino é uma teoria curricular.
NEIRA, MG & NUNES, MLF (2009). Educação Física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte.
A conjugação no pretérito se justifica pelo entendimento de que essas propostas curriculares já não são vistas mais nas escolas (Cf. NEIRA, MG (2016). Educação Física cultural. São Paulo: Blucher
FONTANA, RC (2001). “O corpo aprendiz”, In: RUBIO, K & CARVALHO, YM (Orgs.). Educação Física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec.
examinarem o produto de sua própria consciência ou a natureza da sua condição privilegiada. A alegação dos monoculturalistas é que as diferenças criam divisões e impedem o único e melhor modo, para eles, de construir uma sociedade funcional: o consenso. O modelo consensual fomenta a noção de “cultura comum” que se concretiza, por exemplo, nos currículos unificados e tem sido amplamente defendido pelos setores convervadores da burocracia educacional9. O consenso e a harmonia inseridos no apelo à cultura comum não passam de uma demonstração de isolamento cultural dos membros da cultura dominante, os quais não sentiram na própria pele as pontadas cotidianas da opressão.
Seguindo a categorização elaborada por McLaren10, uma segunda versão do multiculturalismo, o liberal, advoga que apesar da diversidade de etnia, classe, gênero ou religião, todos os homens e mulheres compartilham uma igualdade natural e uma condição humana comum. Nessa perspectiva existe uma uniformidade intelectual que permite às diferentes pessoas, dentro de uma economia capitalista, competir em igualdade de condições na aquisição de recursos.
Os defensores do multiculturalismo liberal expressam a questão da uniformidade de um modo quase utópico, baseando-se na crença de que no mundo existe somente uma etnia: a humana. Na consecução de suas metas, aceitam ingenuamente o axioma do daltonismo cultural, ou seja, a invisibilidade das diferenças culturais. As ideias liberais sobre feminismo defendem que a mulher é igual ao homem e que é capaz de fazer a maioria das coisas que ele faz, o mesmo acontece com as questões étnicas. A razão da desigualdade das posições que ocupam os grupos étnicos não brancos está na falta de oportunidades sociais e educacionais necessárias para competir de forma igualitária na economia; não existem, portanto, as diferenças que os conservadores denominam de deficiências.
Dentre as propostas curriculares da Educação Física analisadas por Neira e Nunes11, os currículos desenvolvimentista, globalizante e saudável, revelam traços de uma visão multicultural liberal. Os defensores do currículo desenvolvimentista entendem que apesar das diferenças individuais fruto de experiências motoras diversificadas e percursos maturacionais diferentes, todos podem alcançar níveis elevados de desenvolvimento motor característicos do cidadão ideal. Para tanto, devem ser adequadamente estimulados. Nesta concepção, as diferenças são diminuídas por meio da ação pedagógica.
Já no currículo globalizante, as diferenças individuais são combatidas através da realização de atividades que prescindem da avaliação dos níveis de desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e psicomotor dos alunos. Se somadas aos desafios corretos, todos alcançarão níveis ideais nos domínios do comportamento humano.
No currículo saudável, a escola valoriza a aquisição e manutenção do modelo de saúde e do estilo de vida amplamente defendidos e divulgados pelas classes sociais média-alta e alta. Nas suas aulas, o professor transmite aos alunos os conceitos, atitudes e procedimentos necessários para a promoção de uma vida fisicamente ativa.
Uma outra versão do multiculturalismo que também opera na lógica da regulação e que tende à descontextualização sociocultural das questões de classe social, etnia, religião e gênero é o pluralista. Como reflexo do imaginário multicultural em parcela dos educadores, a versão pluralista do multiculturalismo geralmente agrega a etnia, gênero, linguagem, cultura, deficiências e, em menor grau, a preferência sexual, no seu firme propósito de proclamar a diversidade humana e a igualdade de oportunidades.
APPLE, M (2003). Educando à direita: mercado, padrões, Deus e desigualdade. São Paulo: Cortez.
Ibídem.
Ibídem.
Quando se destacam as diferenças de etnia e gênero, os defensores do multiculturalismo pluralista afirmam que isso não afeta seriamente as narrativas ocidentais dominantes. Tomando como referência as identidades políticas surgidas nas sociedades ocidentais a partir dos movimentos de libertação dos anos 1960, os partidários do pluralismo alegam que a democracia não abarca somente o interesse pelos direitos de todos os cidadãos, mas também a história e a cultura de grupos tradicionalmente marginalizados. Sob esse manto, o pluralismo se converte em uma virtude social suprema, sobretudo na perspectiva pós-moderna onde a globalização e o neoliberalismo empurram a comunidade para uma cultura mundial, única e uniforme. Nesse campo, a diversidade se converte em algo intrinsecamente valioso e desejável até o ponto da atribuição de um caráter exótico e fetichista. O currículo resultante insiste em ensinar que não se deve ter preconceitos com o Outro. A educação diversificada do multiculturalismo pluralista advoga o ensino dos conhecimentos, valores, crenças e padrões de conduta característicos dos distintos grupos.
Nos currículos pluralistas da Educação Física, por exemplo, os alunos participam de jogos tradicionais, esportes de outras culturas, de danças de outras épocas etc. Os alunos também aprendem que existe a injustiça social, como é o caso, por exemplo, das mulheres ou homens que recebem apelidos preconceituosos “só porque não se adaptam aos cânones sexistas socialmente dominantes”.
Embora não seja possível identificar uma teoria curricular da Educação Física que dialogue com o multiculturalismo pluralista, encontram-se facilmente nas escolas, e mesmo nas universidades, professores que defendem que uma boa proposta é aquela que “extrai o que tem de melhor” em todas as outras. Esse procedimento se baseia na crença de que a atenção do professor às diferenças individuais e a modificação nos métodos de ensino permitirá a inclusão de todos. Em momento algum questionam o que se está ensinando, nem o porquê. Prega-se a tolerância para evitar o conflito, ou seja, evitar o contato com a construção política e histórica da diferença.
Voltando à McLaren12, outra versão do multiculturalismo é o essencialista de esquerda. Por essencialismo se entende a crença em um conjunto de propriedades inalteradas que estruturam uma categoria particular. Essa postura é incapaz de enxergar o lugar que ocupam as diferenças culturais. Se examinarmos o conceito de identidade com a lente da história, compreenderemos que, mesmo importantíssimas, a etnia e o gênero não são as categorias mais rudimentares das experiências humanas. Distintos períodos históricos produzem categorias em torno das quais se pode formar a identidade. O argumento principal a favor desse posicionamento explica que a formação da identidade é social e se modifica constantemente relacionando-se com outras formações ideológicas instáveis e difusas. Os essencialistas não reconhecem essa dinâmica. Na visão deles as identidades são plasmadas.
Os essencialistas se definem em torno da sua autenticidade enquanto cristãos brancos (no sentido direitista) ou como afrodescentendes adeptos do afrocentrismo (no sentido esquerdista). Os pensadores multiculturais essencialistas de esquerda normalmente associam a diferença com um passado histórico de autenticidade cultural na qual se desenvolveu a essência de uma determinada identidade; essência que supera as forças históricas, do contexto social e do poder. Para Apple13, estas essências podem chegar a ser completamente autoritárias quando construídas ao redor do romantismo de uma época, de um orgulho nacionalista e de um entendimento de pureza que negam as complicações de eixos rivais de identidade e poder como a linguagem, a preferência sexual, a religião, o gênero, a etnia e a classe social. Estes fatores invariavelmente criam diversas modalidades de experiência dos sujeitos no interior de qualquer categoria essencializada.
Ibídem.
APPLE, M (2003). Op. cit.
Enquanto teoria curricular da Educação Física que sofre a influência da corrente multicultural essencialista de esquerda, a proposta crítica se encontra submersa na categorização de classe. Seus autores consideram que determinadas manifestações culturais foram contaminadas pela influência capitalista, transformando todos os alunos e alunas em vítimas passivas dos objetivos e métodos dos ocupantes do andar superior. O professor é estimulado a esmiuçar a lógica capitalista implítica, por exemplo, nos esportes.
Observe-se que os currículos críticos da Educação Física não vislumbram a transformação das práticas corporais conforme o contexto sócio-histórico e os sujeitos que delas participam ou sobre elas falam. Tampouco consideram como esferas relevantes ao seu projeto educacional as condições de gênero, religião e etnia.
O modelo assimilacionista promovido pelo multiculturalismo conservador revelou-se incapaz de atingir os objetivos de integração econômica e social, dado que as oportunidades de sucesso educativo dos jovens das minorias são muito reduzidas, uma vez que tanto o currículo escolar como as estruturas do sistema ajustam-se aos alunos do grupo dominante.
Embora se verifique que o aspecto essencial do multiculturalismo conservador é a possibilidade de assimilar a todos que se adaptam às normas da classe média branca, o máximo que conseguiram foi calar as vozes dos oprimidos14.
Como política cultural, Pereira15 compreende que o multiculturalismo conservador aproxima-se da visão assimilacionista. Para a autora, isto implica num processo social conducente à eliminação das barreiras culturais entre populações pertencentes a minorias e à própria maioria. Por esse processo, os indivíduos pertencentes às minorias desfavorecidas adquirem os traços culturais do grupo dominante, ainda que isso exija a perda dos traços culturais originários. A escola e o currículo permanecem centrados nos padrões culturais dominantes e os saberes dos grupos minoritários são ignorados, por que se parte do pressuposto de que os alunos das minorias poderão integrar-se melhor na sociedade, através de uma imersão total e imediata na cultura da elite. A tolerância em relação às culturas minoritárias tem se limitado aos aspectos que não afetam as bases sociais e ideológicas da maioria branca de classe média.
A visão assimilacionista pressupõe que as minorias e os grupos marginalizados não possuem os conhecimentos necessários para a sua inserção satisfatória na sociedade em geral e, em particular, no sistema econômico, estando, consequentemente, impossibilitados de melhorar as suas condições de vida. Nesse raciocínio, não faz sentido que a escola promova a conservação dessas culturas minoritárias, sendo, pelo contrário, necessário dar-lhes oportunidades educativas no currículo existente, permitindo- lhes a inserção no sistema econômico e social da cultura dominante.
Por mais estranho que pareça, Pereira16 constata atitudes de adesão a este modelo por parte dos professores. Esta adesão deve-se a vários fatores, dos quais se salienta o fato de a maioria dos educadores se identificar com os pressupostos assimilacionistas e a prática pedagógica subjacente não requerer alterações significativas em relação às práticas pedagógicas tradicionais.
GIROUX, H (1997). “Praticando estudos culturais na faculdade de educação”. In: Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas.
PEREIRA, A (2004). Educação multicural: teorias e práticas. Porto: Asa.
Ibídem.
Cardoso17 ao discutir os efeitos educacionais dessa visão, afirma que devido ao seu caráter monocultural ou etnocêntrico, este modelo não resolve os problemas das minorias desfavorecidas. Quando esses alunos revelam insucesso escolar, o fato é comumente atribuído a dificuldades linguísticas, cognitivas ou a desajustes culturais, não se questionando o modo como o currículo está organizado ou porque a escola não corresponde às características desses alunos. O que se nota é a intensificação de programas de remediação que pretendem compensar as desvantagens existentes, compatibilizando as crianças com a escola ou preparando-as para uma rápida entrada no mercado de trabalho.
Já o multiculturalismo liberal alinha-se com a concepção integracionista alentada por Pereira18. O integracionismo defende uma escola em que as minorias têm liberdade para afirmar a sua própria identidade cultural, desde que ela não entre em conflito com a dominante. A identidade do diferente pode expressar-se no âmbito particular. Trata-se de um pluralismo mitigado, expresso apenas na dimensão cultural. A integração cultural significa aceitação de aspectos da cultura da minoria que sejam ajustáveis à cultura dominante, mas com a rejeição daqueles que não sejam ajustáveis ou que, de alguma forma, possam ameaçar a cultura dominante.
Ao desferir críticas ao multiculturalismo liberal, Kincheloe e Steinberg19 consideram que um interesse exclusivo pelas semelhanças humanas debilitará a ação democrática e justa de compreender as formas pelas quais a etnia, a classe social, o gênero e a religião instrumentalizam e estruturam as experiências dos privilegiados e oprimidos.
O multiculturalismo liberal tem se mostrado reacionário ao tratar do racismo, sexismo e preconceitos de classe ou ao empreender uma análise crítica das assimetrias de poder. Apesar de utilizar uma linguagem que transpira democracia e ética, é incapaz de reconhecer que o poder se distribui de modo desigual, omitindo as forças que atingem as estruturas da democracia. Os educadores com perfil liberal não compreendem que os grupos que exercem o poder (especialmente o empresariado) têm na atualidade uma influência sem precedentes na constituição da identidade dos sujeitos. No começo do século 21, o poder ideológico impacta violentamente a formação da subjetividade. Ao dar pouca importância às artimanhas do poder envolvendo a etnia, o gênero, a religião e a classe social, o multiculturalismo liberal acaba concebendo as relações humanas como equivalentes. Desconsidera, por exemplo, que os grupos brancos nas sociedades ocidentais controlam uma quantidade bem maior de recursos e possuem bem mais prerrogativas de emprego e ascensão que os demais.
O simplismo político liberal provém da crença moderna de que a análise social e educacional poderá abster-se das relações de poder que envolvem o cotidiano. Os defensores dessa premissa se esquecem que a separação entre a educação e a política não é algo tão fácil assim, senão, vejamos: Quais os critérios que usa o professor ou professora para selecionar um exemplo para seus alunos ou como ele ou ela decidem o que irão ensinar? Esses fatos contribuem para ilustrar as decisões políticas que os professores tomam todos os dias. Afinal, educação é um campo de luta e compromisso social.
Em muitas obras, os autores liberais propõem que os educadores atuem no sentido de estimular a expressão, autonomia e a formação da identidade. Não se pode esquecer que todos esses aspectos se constroem assimilando e negando múltiplas construções ideológicas antagônicas. Quais formas de expressão os professores devem recomendar? Quais identidades os professores devem estimular? Em que momento os professores devem propor situações para o desenvolvimento da autonomia? Como
CARDOSO, C (1996). Educação multicultural: percursos para práticas reflexivas. Lisboa: Texto Editora.
Ibídem.
Ibídem.
se pode ver, estas questões tratam de decisões políticas. Para Kincheloe e Steinberg20, ao glorificar a neutralidade, as posições liberais acompanham o senso comum, pois aceitam a separação entre a moralidade e a política. Essa cisão reflete a racionalização da política, entendendo-a como um terreno que não sofre influência ética ou moral e, portanto, não se mistura com a educação.
Quando o multiculturalismo liberal se envolve com esta pseudo-politização, coloca-se como responsável pelo cumprimento de determinados objetivos hegemônicos. Se os educadores pretendem alcançar o êxito em seus questionamentos às manifestações racistas, elitistas e patriarcais, terão que expor a cegueira racionalista do multiculturalismo liberal às abundantes formas de dominação sofridas pelas comunidades não brancas, pelos pobres e pelas mulheres na cultura ocidental contemporânea21.
Os multiculturalismos liberais asseguram, desta forma, a contínua exploração das comunidades minoritárias. Como exemplo, vale mencionar o caso de algumas ONGs ligadas às práticas corporais (escolinhas de futebol, balé e outras danças) que, sob o discurso de oportunidades iguais a todos, oferecem aos membros dos grupos subalternizados oportunidades para vivenciar e aprender as manifestações da cultura hegemônica.
No plano educativo, essa visão integracionista evoca o conhecimento e o respeito pelas diferenças culturais de modo a combater preconceitos, a promover o autoconceito e a autoestima dos pertencentes aos grupos marginalizados, preparando-os para a vida em uma sociedade multicultural. Em virtude de sua filosofia liberal, a crença na modificação da sociedade pela integração das minorias deu origens a algumas mudanças no discurso político educacional brasileiro que passou a incluir princípios multiculturais e a recomendar práticas de educação multiculturais, dentre as quais se destaca a obrigatoriedade da inclusão da cultura africana e indígena nos currículos da Educação Básica com a intenção de atenuar a relação de superioridade eurocêntrica, ainda presente na sociedade. Relativamente aos professores, espera-se que adquiram conhecimentos sobre a diversidade cultural dos seus alunos e que desenvolvam formas para planejar e implementar as atividades, tendo em conta a diversidade existente.
Um impacto direto do multiculturalismo liberal pode ser identificado pela crescente rejeição às ações afirmativas. Os argumentos conservadores divulgam não somente um tratamento diferencial das minorias constituindo, então, o “racismo inverso”, como também conduzem a uma postura de vitimização na qual se reproduz a impotência entre as mulheres e as comunidades negras, por exemplo. Pois bem, essa linha de argumentação omite o fato de que alguns programas sociais em funcionamento foram elaborados à custa do aumento de impostos para a classe média e não com base no aumento da produtividade interna. Dessa maneira, a responsabilidade pelo arrocho fiscal ao qual foi submetida, principalmente, a classe média (branca, proprietária de imóvel, com empregos bons e portadores de diploma universitário), recai sobre a população desprovida de recursos materiais e receptora dos parcos recursos advindos dos referidos programas.
Para Apple22, a resistência às ações afirmativas omite a crescente insegurança experimentada pelos homens brancos e escolarizados da classe média com o aumento da concorrência com os outros grupos pelos melhores postos no mercado de trabalho. Contudo, como McLaren23 assevera, os direitos dos antigos e novos prejudicados não são iguais seja qual for o modelo de justiça aplicado. Também observa que o multiculturalismo deverá associar-se a um ajuste estrutural e com um crescente desenvolvimento
Ibídem.
McLAREN, P (2000). Op. cit.
APPLE, M (2003). Op. cit.
Ibídem.
patrimonial dos grupos com rendimentos inferiores. Sem redistribuição econômica, o crescimento econômico propicia formações preconceituosas.
Já o multiculturalismo pluralista requer, em nome da diversidade, que os estudantes adquiram uma “alfabetização multicultural”. Esta alfabetização daria aos homens e mulheres da cultura dominante a habilidade necessária para atuar com êxito em subculturas ou em situações culturalmente diferentes. Ao mesmo tempo, os alunos e alunas de origens culturais diferentes aprenderiam a atuar dentro da cultura principal; uma habilidade que, segundo seus promotores, é essencial para conquistar igualdade nas oportunidades no campo econômico e educacional. Outro passo pluralista importante neste propósito de ajudar as mulheres dos grupos minoritários no alcance da igualdade de oportunidades consiste em estimular o orgulho por suas tradições e por suas próprias diferenças culturais. Muitos professores possuidores desta visão desenvolvem discussões sobre os lugares de origem das famílias dos estudantes, sobre suas tradições e costumes. Pedem que estudantes pesquisem sobre as danças ou brincadeiras típicas daqueles lugares para depois relatá-las ao grande grupo. Por vezes, recorrem a projetos específicos como capoeira, dança do povo “x”, brincadeiras infantis etc. E, comumente, referem- se aos sucessos alcançados por representantes dos grupos minoritários no campo esportivo. Deixando- se levar pela falácia da descontextualização sociopolítica, muitas vezes os pluralistas dão a entender com estas atividades que qualquer um pode conseguir o que se proponha, contanto que trabalhe duro e com muita vontade. Infelizmente, o orgulho pelo próprio patrimônio cultural não é a panaceia para tantos anos de opressão. Neste aspecto, o multiculturalismo pluralista promete uma emancipação que não pode desencadear já que confunde a afirmação psicológica com a faculdade política24.
Kincheloe e Steinberg25 denunciam que o processo de psicologização e a tendência à despolitização transformaram-se na obsessão do multiculturalismo pluralista. Esse espírito absorveu uma generosa dose de relativismo moral, abortando qualquer ação politicamente fundamentada para a consecução de justiça social. O multiculturalismo pluralista degenera em uma atitude acadêmica que provoca respeitabilidade intelectual, deixando intacto o status quo da desigualdade. Uma característica desse processo é a atitude reacionária ao abordar as diferenças de classe de um ponto de vista socioeconômico. Simultaneamente ao fortalecimento do multiculturalismo pluralista, aumenta a disparidade econômica entre pobres e ricos e os recursos materiais das minorias encolhem. Enquanto isso, o multiculturalismo pluralista contribui para criar a impressão de uma mobilidade socioeconômica ascendente para mulheres, afrodescendentes e migrantes. Proliferaram tanto as representações inclusivas do pluralismo na opinião de Apple26, que muitos homens brancos de classe média acreditam que, agora, são eles as vítimas da discriminação racial e de gênero.
A valorização pluralista da diferença somada à comercialização proposta pelo neoliberalismo do estrangeirismo multicultural contribuiu para o aumento da visibilidade de “indivíduos” pertencentes aos grupos minoritários - produções televisivas enfeitadas pelo merchandise social (novelas e minisséries) e acontecimentos como os desfiles de moda, o Carnaval, a exaltação dos esportistas e artistas etc. Uma nova lógica multicultural está surgindo no interior desta configuração social onde se alcançou uma certa paridade na representação simbólica do Outro ao mesmo tempo em que cresceu a disparidade na distribuição da riqueza. Uma vez mais a etnia foi alocada na esfera privada pouco ou nada se relacionando com a dinâmica estrutural do patriarcado ou com o elitismo de classe. A lógica multicultural pluralista é incapaz de perceber as relações de poder que existem entre a construção da identidade,
McLAREN, P (2000). Op. cit.; YUDICE, G (2006). A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Ed. UFMG
Ibídem.
APPLE, M (2003). Op. cit.
as representações culturais e as lutas por recursos. Somente com esta conjugação, as escolas e universidades estarão à disposição para rever seu histórico papel de racionalizadoras da conduta dos privilegiados e de acobertadoras dos métodos que a hegemonia utiliza para configurar o modo de evolução da ordem social27. Ingenuamente, os pluralistas criticam a produção de massa em detrimento do consumo diferenciado reforçando o tom pós-moderno das relações sociais.
O multiculturalismo pluralista se dedica a elogiar as diferenças em um momento em que os assuntos mais importantes e que afetam aos grupos minoritários nem sequer são pensados pelos representantes da elite socioeconômica. Quando se fala em violência e pobreza sem mencionar as relações de poder da estrutura social, o pluralismo se converte em um exercício trivial que não chega a tocar nas causas das diferenças.
Em propostas curriculares multiculturais pluralistas são apresentados objetivos e conteúdos idênticos a todos os estudantes do município, estado ou país. Dessa forma desenvolve-se uma dinâmica que atribui aos grupos minoritários os mesmos valores que aqueles destinados à classe média tal como se vivessem em universos culturais semelhantes e possuíssem exatamente as mesmas histórias de vida. Tal qual o multiculturalismo liberal, para os pluralistas, todos os grupos são ideologicamente similares, com a exceção que no multiculturalismo pluralista, alguns grupos possuem uns poucos hábitos, únicos e formados através de experiências específicas mas não muito diferentes.
Uma visão pluralista bem presente nos currículos de Educação Física pode ser identificada na atribuição de atividades paralelas aos alunos com deficiência. Infelizmente, o que se vê em inúmeras escolas é, durante as aulas nas quais seus colegas jogam, dançam ou praticam esportes, a criança ou jovem com alguma deficiência permanece anotando os resultados ou apitando os jogos. Analisando o procedimento à luz da teorização multicultural, nota-se que a aula foi pensada para os alunos e alunas que não apresentam dificuldades. Quando o professor adaptada uma situação para a inclusão segundo a sua lógica superior e dominante, proporciona um clima de “pena” e “dó”. Sob o manto da pluralidade, rejeita-se qualquer possibilidade de participação coletiva na solução deste problema, resguardando para o Outro uma participação marginal com a camuflagem da inclusão.
Enquadram-se aqui, também, as aulas que separam meninos e meninas, as distribuídas por modalidades e aquelas em que se revezam as escolhas do professor e dos alunos. Nesses casos, pode-se perceber uma perspectiva de participação seccionada, onde, cada um faz sua atividade, mas todos estão fazendo algo. Ou seja, mesmo juntos, estão sozinhos. Nesse contexto, grupos ou pessoas diferentes não se encontram e, portanto, não surgem embates nem motivos para que os currículos sejam questionados e reconfigurados.
O desejo pluralista pela inclusão dos culturalmente diferentes pode ajudar a mantê-los em posição de desvantagem. É o que acontece quando se convida um “representante” dos povos indígenas para que palestre sobre sua cultura mediante remuneração. Após apresentar pinturas corporais, lendas ou músicas, as crianças ficam chocadas quando veste calça, camisa e vai embora. Visitas, excursões, eventos comemorativos ao estilo “dia do...”, entre outros, são formas de expressão de um “turismo cultural” incapaz de abordar ou compreender as duras realidades de subordinação da etnia, classe social, religião e gênero dado que concebe a diferença fora de um contexto histórico, cultural e de poder, trivializa a dura realidade do Outro e o relega a um submundo politicamente isolado. Em outras palavras, o multiculturalismo pluralista extirpa a diferença transformando-a em diversidade inócua.
Prosseguindo com as análises, a tendência multicultural essencialista produz uma certa superioridade moral entre os membros do grupo que partilham condições de opressão. Além de endógena, essa
YUDICE, G (2006). Op. cit.
visão traduz uma forma de produção de conhecimento que simplifica a complexidade histórica. Em determinados contextos acadêmicos o multiculturalismo essencialista simplesmente reproduz o cânon tradicional ao criar uma dualidade invertida: a cultura dominante é ruim e a cultura dominada é boa. A procura essencialista da autenticidade na indentidade e na história conduz a privilégios da identidade como fundamento da autoridade política e epistemológica. Esse fundamento leva a um caos no grupo, uma vez que a natureza múltipla e ambígua de qualquer processo de subjetivação dá lugar a lutas sobre qual articulação identitária é verdadeiramente autêntica.
Os autores multiculturais essencialistas reconhecem com frequência que somente as pessoas autenticamente oprimidas possuem influência moral. Este “privilégio de opressão” caracteriza a pessoa subordinada como portadora de um conjunto particular de experiências naturais como a única autorizada a fazer determinadas críticas. Essa política de posicionamento baseia a verdade na identidade e concede a um conjunto não investigado de experiências autênticas o privilégio de ser o fundamento da autoridade epistemológica.
Contrapondo-se, Kincheloe e Steinberg28 endossam a necessidade de que os sujeitos pertencentes a grupos privilegiados sejam sensíveis às diferenças de poder quando interatuam com pessoas procedentes de grupos oprimidos. Por exemplo, um diretor ou diretora deverá ter cuidado ao conversar com os professores para não invocar seu privilégio funcional e falar-lhes com suficiência ou falar por eles. Uma atenção semelhante deverá permear a ação docente quando se referir aos alunos e alunas. Sobre a base de privilégio da opressão, muitos professores multiculturais essencialistas simplesmente transferem aos estudantes um conjunto não problemático de dados autênticos transformando sua prática pedagógica em um embate permanentemente tenso perante as concepções de mundo dos estudantes. Tal ação aproxima-se do doutrinamento, considerando que em uma sociedade democrática essa postura pedagógica reflete arrogância didática. A atividade educativa poderá adjetivar-se crítica somente se os estudantes tiverem a oportunidade de examinar várias perspectivas, refletir sobre as condições de opressão a elas subjacentes, e buscar e propor alternativas para superá-las29.
Na opinião de McLaren30, os educadores multiculturais pluralistas e essencialistas de esquerda fracassaram ao enfrentar as perigosas prentensões dos monoculturalistas. As razões do seu insucesso vão desde a imitação que fizeram nas suas críticas ao racismo aos próprios posicionamentos destes, mesmo que, historicamente tenham chamado para si a autoria da crítica anti-racista e ao afastar-se das críticas ao capital, permaneceram unicamente no campo das palavras. Em função disto, o multiculturalismo serviu muitas vezes de cimento para um consenso do sistema e para a apologia neoliberal. Essa apologia forçou as pessoas a integrar-se no mercado de trabalho global de uma sociedade consumista em busca do próprio benefício.
A ênfase dada às subjetividades múltiplas resultante da crítica à singularidade, à autonomia e à identidade, conduziu à procura pelas teorias do construtivismo social, embora um tanto incapazes de localizar sua posição na corrente do capitalismo contemporâneo. No interior de algumas correntes do multiculturalismo, a auto-reflexão converteu-se em uma histórica impossibilidade que sofre para adquirir significado. Por outro lado, algumas formas superficiais da teoria pós-moderna relativizam a opressão caracterizando-a como um sentimento subjetivo e reduzido a práticas comunicativas extraídas de amplas estruturas sociais e econômicas. Em semelhança, parece que há uma falta geral
Ibídem.
McLAREN, P (1997). A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da Educação. Porto Alegre: Artmed.
McLAREN, P (2012). “Prólogo”, In: KINCHELOE, JL & STEINBERG, SR (2012). Repensar el multiculturalismo. Barcelona: Octaedro.
de conscientização no quanto a etnia, classe social, religião e gênero não são sincrônicos e que estão entrecruzados por vetores de privilégio e relações de desigualdade, por conseguinte, são construídos por uma materialidade de forças. Para McLaren31, no estado-nação, a etnia, a classe social, a religião e o gênero foram sublimados pela economia simbólica da cultura nacional que construiu uma comunidadade artificial na qual foram submetidas a um tratamento de acomodação, sendo tratadas por associações voluntárias, manifestações com significado cultural e negociações que buscam o consenso dos discursos sem considerar que suas construções encontram-se inspiradas por relações de poder e relações sociais de produção e reprodução, ou seja, existem como relações estruturais e hierárquicas dependentes e reproduzidas em benefício dos mais favorecidos pela atual divisão social do trabalho.
Esse apanhado geral sobre as concepções do multiculturalismo conservador, liberal, pluralista e essencialista de esquerda permite perceber as várias vertentes que têm caracterizado o assunto. No que diz respeito à educação, autores como Stoer e Cortesão32 e Pacheco33 unem-se a McLaren na crítica às propostas apresentadas com o argumento de que não se pode promover a igualdade recorrendo apenas a currículos que expressem a diversidade cultural.
Como alternativa às ideias anteriormente apresentadas, os educadores envolvidos com as questões multiculturais têm proposto uma outra concepção de multiculturalismo que centraliza a problemática da reprodução da hegemonia capitalista, da globalização das relações sociais de produção das comunidades regionais como constituintes de subjetividades. Dito de outro modo, o multiculturalismo, considerando a desorganização contemporânea do capitalismo, deverá comprometer-se tanto local ou regional quanto mundialmente com a transformação. McLaren denomina tal posicionamento de “multiculturalismo crítico”.
Kincheloe e Steinberg34 aprofundaram e expandiram o conceito de multiculturalismo crítico. Resumidamente, a teoria crítica está particularmente interessada em saber de que modo se produz a dominação, ou seja, como se configuram as relações humanas nos lugares de trabalho, nas escolas e na vida cotidiana. Os teóricos críticos procuram conscientizar o sujeito como ser social. O homem ou mulher que alcance essa conscientização estará disposto a compreender como e porque suas opiniões políticas, sua classe socioeconômica, seu papel na vida, suas crenças religiosas, suas relações de gênero e sua própria imagem étnica, estão configuradas pelas perspectivas dominantes.
Kincheloe e Steinberg35 entendem que a teoria crítica fomenta a auto-reflexão, a qual favorece as mudanças de perspectiva. Homens e mulheres conhecem-se a si próprios tornando consciente o processo pelo qual se formaram seus pontos de vista. Uma vez alcançada a prática da auto-reflexão, podem-se estabelecer estratégias para enfrentar as questões individuais e negociar os aspectos sociais. A teoria crítica assinala que essas estratégias não são regras. Em seu lugar se desenvolvem uma série de princípios em torno dos quais se analisam e discutem possíveis ações. Os multiculturalistas não familiarizados com a teoria crítica são sabem ao certo que tipo de ações realizar após as suas análises. Isto pode ser bastante frustrante para os formados no seio da tradição moderna e que, por conseguinte, estão acostumados a dispor de um conjunto específico de procedimentos que guiam suas ações.
Ibídem.
STOER, S & CORTESÃO, L (1999). Levantando a pedra: da pedagogia inter/multicultural às políticas educativas numa época de transnacionalização. Porto: Afrontamento.
PACHECO, N (2000). “Do confronto de culturas às relações interculturais”, In: Educação, sociedade e culturas, vol. 13, pp. 119-139.
Ibídem.
Ibídem.
Pedagogia crítica é a expressão utilizada para descrever o resultado do encontro da teoria crítica com a educação. Da mesma forma que a teoria crítica em geral, a pedagogia crítica nega-se a estabelecer um conjunto específico de procedimentos de ensino. As pedagogias críticas, conforme McLaren36, enfrentam os pontos de vista modernos e positivistas predominantes nas tradicionais teorias liberais e conservadoras do ensino. Ultrapassando as formas analíticas, a pedagogia crítica facilita aos estudantes e professores a compreensão de como funcionam as escolas mediante a denúncia dos processos classificatórios dos alunos e das implicações de poder presentes nos currículos.
Segundo Kincheloe e Steinberg37, os defensores da pedagogia crítica multicultural não têm pretensões de neutralidade. Sua diferença em relação aos demais enfoques se baseia na clara exposição dos valores que norteiam suas práticas. Daí, o multicultualismo crítico estar comprometido com a ideia de igualitarismo e a eliminação do sofrimento humano.
Qual a relação existente entre o processo escolar e a desigualdade social, considerando o processo que a acompanha? A busca de uma resposta a esta pergunta conduz as atividades de um professor multiculturalista crítico. Ao atuar solidariamente com os grupos submissos e marginalizados, pretende desvelar os sutis e, por vezes, ocultos, processos educativos que favorecem os privilegiados economicamente e anestesiam os esforços dos desfavorecidos. Quando o ensino é visto através desse prisma, derruba-se a crença ingênua de que esta educação proporciona uma sólida mobilidade econômica aos estudantes não brancos ou pertencentes à classe trabalhadora. Como também se questiona que a educação proporciona um conjunto de capacidades politicamente neutras e um corpo de conhecimentos objetivos. Kincheloe e Steinberg38 consideram fundamental para um multiculturalismo baseado na teoria crítica o reconhecimento de que tanto a pedagogia cultural (meios de comunicação, arte, música etc.) quanto o ensino não apresentam neutralidade nem inocência.
Para os autores é necessário substituir os conceitos conservadores e liberais que consideram que todos os grupos vivem em condições similares no sistema social que o caminho se encontra aberto a qualquer um que deseje o progresso. Mesmo na atualidade, quando a produção econômica impele a divisões sociais desiguais baseadas na etnia, gênero, religião e classe, os multiculturalistas conservadores e liberais sentem-se incomodados utilizando o termo “opressão”, os multiculturalistas críticos desejam um estado de igualdade e democracia também na esfera econômica da sociedade.
À medida que as culturas ocidentais começaram a deslizar para a hiper-realidade da pós-modernidade, com seu neoliberalismo, seus mercados mundiais e o bombardeio de informação eletrônica, diminuiu substancialmente a capacidade de distribuição equitativa de recursos. A desigualdade de classe social é uma preocupação crucial no multiculturalismo crítico defendido por Kincheloe e Steinberg39. Embora não seja a única categoria, a classe interage com a etnia, gênero e outros eixos de poder. Desvelar esse processo é o que mais interessa ao multiculturalismo crítico, portanto, o que se pode recomendar aos educadores é que se dediquem a analisar profundamente a maneira pela qual a dinâmica de poder se reflete na cultura viva, mundana e cotidiana, tomando nota como o patriarcado, a supremacia branca e o elitismo de classe invadem todas as dimensões humanas. O multiculturalismo crítico tenta “desocultar” a natureza “oculta” dessas operações, descobrindo como se realizam a maior parte do tempo sem que sejam percebidas inclusive por aqueles que delas participam. Às vezes, a sutileza desse processo é extremamente desconcertante dado que a natureza obscura de muitas manifestações preconceituosas em relação à etnia, sexo, religião e classe, tornam difícil o convencimento de sua realidade aos
McLAREN, P (1997). Op. cit.
Ibídem.
Ibídem.
Ibídem.
indivíduos da cultura dominante. Essa sutileza é acompanhada pelo conhecimento da existência de tantas diferenças intragrupais quanto intergrupais40.
Outro aspecto central do multiculturalismo crítico é a forma como o poder molda as identidades. Isso se relaciona com os mecanismos pelos quais as inscrições ideológicas se inserem na subjetividade; com as formas utilizadas pelas correntes de poder para manipular o desejo com propósitos hegemônicos; com os meios utilizados pelos poderes difusos para configurar o pensamento e a conduta através da presença e ausência de diferentes palavras e conceitos e finalmente, com os métodos utilizados pelos indivíduos para afirmar sua influência por meio das manobras do poder.
Os multiculturalistas críticos entendem que os indivíduos produzem, renovam e reproduzem os significados em um contexto constantemente configurado e reconfigurado pelo poder. Esta reprodução cultural engloba o modo pelo qual o poder, sob a variedade de formas que assume, ajuda a construir a experiência coletiva atuando favoravelmente à supremacia branca, ao patriarcado, ao elitismo de classe e a outras forças dominantes. Neste sentido, as escolas funcionam em cumplicidade com a reprodução cultural, uma vez que os professores, inocentemente, atuam como guardiães culturais transmitindo os valores dominantes e protegendo a cultura comum dos “invasores” sempre à vista.
O multiculturalismo crítico utiliza-se da bibliografia e métodos analíticos dos estudos culturais visando a aquisição de um conhecimento mais profundo das representações de etnia, classe social, religião e gênero nas várias esferas sociais. Seu próximo passo é conectar essas representações com seus efeitos materiais. Tais efeitos relacionam-se com o capital nacional e multinacional e se encontram intimamente ligados às questões distributivas dos recursos. Nesta ordem, a cultura, a política e a economia são as partes integrantes de um processo hegemônico e de poder amplo que permite indagar como se legitimam as reclamações de recursos e porque continua a aumentar a disparidade de riquezas. Neste sentido, está perfeitamente claro que o multiculturalismo crítico busca uma diversidade que compreenda um maior interesse pela justiça social41.
Os reflexos dessas teorizações no campo curricular da Educação Física foram esmiuçados em diversos trabalhos42, cujas orientações didáticas podem ser apresentadas da seguinte maneira: 1) uma Educação Física multicultural crítica abre espaço para a tematização das práticas corporais pertencentes a qualquer grupo, independentemente da origem ou da posição hierárquica; 2) Qualquer prática corporal deve ser estudada de forma contextualizada mediante situações didáticas que permitam reconhecer o ponto de vista dos seus representantes; 3) O trabalho pedagógico é criterioso com os conhecimentos dos setores minoritários; 4) A visão “de cima” (eurocêntrica, masculina, da classe média e alta) divide o espaço pedagógico com as visões “de baixo”, contribuindo para o reconhecimento das perspectivas dos diferentes; 5) Analisar criticamente as representações relacionadas às práticas corporais e seus praticantes que circulam na sociedade mais ampla; 6) Desenvolver uma pedagogia inspirada na etnografia e na historiografia das práticas corporais enquanto modos de acessar e produzir conhecimentos.
Apesar do que propagam os discursos conservadores, é importante dizer que a Educação Física inspirada no multiculturalismo crítico não pretende trocar o centralismo da cultura corporal dominante por um centralismo da cultura dos estudantes. O que se defende é que os conhecimentos alusivos às práticas
YUDICE, G (2006). Op. cit.
McLAREN, P (2000). Op. cit.
NEIRA, MG (2006a). “Por um currículo multicultural da Educação Física”. Presença Pedagógica. Belo Horizonte, v.12, pp.31- 40.; NEIRA, MG (2006b). “O currículo multicultural da Educação Física: uma alternativa ao neoliberalismo”. Revista Mackenzie de Educação Física e Esporte, vol. 5, pp.75-83.; NEIRA, MG (2008). “A cultura corporal popular como conteúdo do currículo multicultural da Educação Física”. Pensar a prática, Goiânia, vol. 11, n°. 1, jan./mar., pp. 81-90.; NEIRA, MG (2011). Educação Física: a reflexão e a prática do ensino. São Paulo: Blucher.; NEIRA, MG (2016). Op. cit.; BONETTO, PXR & NEIRA, MG (2017). “Multiculturalismo: polissemia e perspectivas na Educação e Educação Física”, Dialogia. São Paulo, n°. 25, jan./abr, pp. 69-82.
corporais desdenhadas ou tergiversadas possam receber a mesma atenção que as manifestações hegemônicas. Também espera-se que a cultura corporal dominante seja analisada com outros olhares, tomando como base as crenças epistemológicas pertencentes a setores minoritários. Essa análise não tem intenção de demonizar as práticas elitizadas nem de afirmar que se tratam de conspirações contra os grupos desfavorecidos. Apenas pretende-se abrir espaço para os saberes que historicamente foram vilipendiados. Esses conhecimentos são convertidos em valiosos recursos na construção de um futuro melhor para todos os indivíduos, o que significa um futuro coletivo baseado nos princípios comunitários, no poder compartilhado e na justiça social.
A Educação Física multicultural crítica busca novas formas de ver as coisas quando valoriza as perspectivas marginais. A premissa básica é que a análise histórica do passado contribui para a compreensão das transformações sociais ocorridas e alenta para a modificação do atual quadro social. Ela se desprende do marasmo que povoa as quadras e os pátios com estudantes habituados a conhecimentos técnicos, para unir-se ao conflito dos espaços públicos, da relação com a comunidade e com as problemáticas vividas, incitando posturas efetivamente engajadas com a ocorrência social das práticas corporais. Para tanto, articula suas ações com as relações interpessoais experimentadas na escola e fora dela, com o intuito de promover situações didáticas que assegurem a democracia e colaborem para a construção de uma sociedade menos desigual.
Año 22, n° 79
Esta revista fue editada en formato digital y publicada en octubre de 2017, por el Fondo Editorial Serbiluz, Universidad del Zulia. Maracaibo-Venezuela
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